No último dia 11 de abril, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, esteve no Liceu Camões, em Lisboa, onde foi interrompido por jovens ativistas que manifestaram a sua posição política num ato de protesto. A resposta do chefe de Estado foi clara: “Isto é o 25 de abril. Na ditadura eles teriam sido presos, levados para a cadeia, proibidos de falar e o Presidente da República não pediria uma salva de palmas para eles. É a diferença entre a democracia e a ditadura”. Mas será que esta geração compreende as palavras que o Presidente da República lhes endereça? Será que a juventude atual, nascida num contexto social-cultural dotado da normalização e até banalização da liberdade, reflete e percepciona a matriz simbólica subjacente a cada um dos conceitos enunciados?
Importa efetuar o paralelismo entre o ‘hoje’ dito democrático e o Estado Novo, porque se é verdade que Portugal comemora esta quinta-feira, dia 25 de abril, os 50 anos da Revolução dos Cravos, também é certo que questões fragrantes da sociedade como o bullying, o racismo, o sexismo e a misoginia, o machismo, a homofobia, e as desigualdades sociais e económicas não só subsistem, como contaminam num ápice silencioso, mas crescente e progressista, a nossa sociedade. E trata-se de um processo de ciclo vicioso, porque tal como Salazar sabia e conhecia a população portuguesa da sua época de um modo geral, também as vozes políticas atuais percebem muito bem os portugueses com os quais estão a lidar e o que devem efetuar para ‘agradar’ as massas populacionais e, sobretudo, conseguir nelas influir a proliferação de um certo tipo de pensamento e discurso. E se por um lado releva lembrar que a população daquela época diferia da população portuguesa atual, desde logo por se caracterizar como uma população muito rural, analfabeta, e muito influenciada pela Igreja Católica, por outro, também se realçam as semelhanças de uma e outra. É que se aquela não dispunha de recursos educativos e económicos suficientes, esta, não obstante disponha de condições de pensar, refletir e criticar com suficiente razoabilidade, prefere cerrar os olhos, ser espectador passivo da sua realidade social e política, abdicar do seu direito de voto e simplesmente deixar que outros ditem por si. Salazar tinha um certo desprezo pelos portugueses, considerava que não eram rigorosos, que tendiam sempre a esperar que as coisas ‘viessem de cima’, e eu temo ter de partilhar da mesma opinião relativamente à larga maioria da sociedade atual. De facto, Salazar conseguiu que esse processo se enraizasse na sociedade portuguesa de forma geracional, transformando-se no equivalente biológico do ADN de uma massa populacional que foi alvo de reforço. E a mudança de mentalidades é difícil e demora, e talvez por essa mesma morosidade na sua transformação, a tendência de esperar que as decisões venham de cima ainda esteja presente. De acordo com a historiadora Irene Pimentel (2018), “Qualquer dia já temos tantos anos de pós-ditadura como de ditadura e não podemos estar sempre a culpabilizar o antigo regime pelo que se passa hoje”.
Também eu nasci em democracia, também eu fui outrora a criança olhada com certo grau de condescendência face à pergunta “Sabes porque é que é feriado no dia 25 de abril?”. E recordo. Recordo os ensinamentos que me foram transmitidos. Recordo, sobretudo, as palavras dos meus educadores. Ensinaram-me o que era “O dia 25 de abril”, qual a razão de ser feriado, e o motivo pelo qual popularmente era evocado como a “Revolução dos Cravos”. Anualmente ouvia a mesma ‘estória’, repetitiva na minha perspetiva à época, que já a memorizara mas ainda não atingira a maturidade da sua compreensão. Mas a interiorização dos factos tinha já sido eficaz. Detinha uma compreensão simples, porém correta acerca da demarcação entre o antes e o depois do regime do Estado Novo: sabia que a data celebrava a conquista da liberdade, a possibilidade de falar, de escrever e de reunir em grupos, sem suscetibilidade de poder estar a incorrer nalguma prática conspiracional ou de atentado ao governo; e sabia igualmente, que antes da desejada revolução não existia liberdade, as pessoas não podiam conversar ou agir sem que pairasse no seu pensamento o medo advindo da possibilidade de estarem a ser vigiadas, e por conseguinte, denunciadas ou correlacionadas com qualquer tipo de comportamento conotado como infrator da lei e daquilo que era o permitido. O que estava em causa era a liberdade. E, em última análise, não será sempre a permissão da prática deste direito o que estará em causa?
E, tal como é enunciado no poema de Manuel Alegre, não fosse sempre a existência daquele “alguém que semeia canções no vento que passa”, sementes lançadas em prol da liberdade, liberdade de expressão, liberdade de criação, liberdade de reunião, liberdade de existir e de nessa existência ter uma voz, a liberdade sonhada e prometida não seria alcançada. E estas canções que são semeadas “no vento que passa”, desde logo, derivam do espírito de resistência, do espírito de resiliência e da luta permanente pelo direito a alcançar uma representatividade digna e humana, hoje legalmente consagrada na sociedade. Estas “canções” visam desmascarar a opressão, quebrar o silêncio e romper os medos para que possa haver uma luta diária no quotidiano das pessoas pelos seus direitos e valores, através do dever individualmente cumprido de cidadania. E “há sempre alguém que resiste” lutando pela democracia, lutando e persistindo diariamente para se fazer ouvir e para que a sua voz tenha efeito: para que a opressão e a censura não vençam, para que o silêncio não prevaleça, para que haja a vitória do direito a ser livre. A demanda pelo direito a ter voz, o direito a dizer basta será sempre a força motriz daquele “alguém que diz não” e, sim, vai sempre haver alguém que resiste, vai sempre haver alguém que persiste, porque a luta pela liberdade é uma constante, é uma constante que está sempre presente ao longo da História e está hoje presente como esteve na época que antecedeu o 25 de abril de 1974.
Salazar soube ‘movimentar as peças’ do jogo político suficientemente bem para que os países da NATO não tenham considerado como preponderante a necessidade de alterar o regime político em vigor em Portugal aquando do Estado Novo. De facto, quando comparado a outros regimes fascistas daquela época, o regime ditatorial salazarista, aparenta ter sido bem sucedido em demarcar um certo distanciamento, a ponto de até mesmo muitos académicos de contextos externos ao português, desvalorizarem o emprego da palavra ‘ditadura’ para evocar o regime político ora vigente em Portugal. E Salazar teve êxito na divulgação dessa imagem no espaço público, que se mostrou de tal modo eficaz, que fez com que os Aliados considerassem ser melhor Salazar continuar no poder em detrimento de um regime democrático suscetível de fomentar a força política do Partido Comunista. O fascismo português dispôs de inúmeros recursos, bem estruturados, salvaguardando o seu eventual derrube: a Igreja Católica, assentou numa matriz doutrinal e ideológica comum ao Estado Novo, apoiando durante muito tempo a ditadura; o controlo de todas as polícias, especialmente a polícia política (PIDE), cuja função era reprimir e neutralizar as minorias, eliminando da esfera pública e, logo, da opinião pública, os aspetos que visou; mas também, o domínio das Forças Armadas, que se revelou fator crucial, pelo que foi precisamente a rebelião, de uma parte desta organização, contra o regime, derivada da Guerra Colonial, que conduziu ao 25 de abril; e, sem querer ‘batalhar’ em torno dela, tenho de mencionar a censura que se afirmou como instituição basilar do regime Salazarista. Existiu o propósito claro de querer fazer desaparecer atos e seus intervenientes e isso, desde logo, foi enfatizado na liberdade de imprensa escrita e na liberdade de expressão pública: escritores que não eram publicados, figuras sociais que não eram alvo de entrevistas, acontecimentos que não eram noticiados, não obstante não só escritores e jornalistas serem os alvos de censura, como todo o leque artístico e cultural. Mas mais grave e difícil de imaginar nos dias de hoje é a inviabilização dos mais fundamentais direitos e liberdades do indivíduo, enquanto cidadão individualmente consagrado. E importa recordar esta verdade historicamente empobrecedora do nosso país, sobretudo devido ao longo hiato temporal da ditadura, pelo que muitos foram aqueles que, embora tenham lutado, nasceram, viveram e morreram desconhecendo o significado da liberdade. Daí a urgência de perpetuar a transmissão desta narrativa e exercer de forma contínua, de geração em geração, o papel fundamental da memória, para que aqueles que a censura predestinou como esquecidos, não o sejam na atualidade.
Nunca será demais questionar e refletir acerca das causas geradoras da Revolução de abril e, hoje, mais do que nunca, pois embora os 50 anos decorridos, todos os dias o poder político manifesta estar munido de formas de se impor e de, de forma direta ou indireta criar obstáculos e sim, de criar censura. E vai existir sempre censura, porque existe a criação, recriação, transmissão e perpetuação, de moldes governativos e de justiça que têm por objetivo dominar e prevalecer e a situação verifica-se no longo percurso histórico de edificação dos sistemas de poder na sociedade. E sistemas de poder fomentam hierarquias de interesses e de ‘lealdades’, pautadas pelos indiscutivelmente inegáveis ‘favorecimentos’, mediante práticas déspotas e, quando isso ocorre, significa que haverá sempre o exercício de mecanismos de censura, mecanismos de silenciar aqueles que se querem fazer ouvir, mecanismos de silenciar aqueles que sabem pensar, aqueles que sabem olhar a realidade, aqueles que não consentem participar no facilmente apreciado movimento de ignorância porque desprovido do questionamento da autoridade.
Urge haver “sempre uma candeia” para aquele “alguém que diz não”, aquele alguém que questiona quem está no poder e as decisões que são tomadas. A mensagem que enfatizo nesta quinta-feira é a de que o dia 25 de abril, comemorado no ano de 2024, é um alerta, porque os problemas subsistem nas diversas dimensões que transversalmente circunscrevem a sociedade, algo tanto evidente pelo sucedido no dia 14 de março de 2024, data em que os jornalistas portugueses fizeram greve-geral, algo que não se realizava desde 1982. A greve concretizou-se porque o próprio jornalismo, na aceção das suas características intrínsecas, como o direito à liberdade de expressão, o direito à liberdade de imprensa, o direito de acesso à informação, o direito à comunicação e o direito a ser informado com verdade e rigor, está em causa, e estão em causa desde há muito tempo, o que reflete a existência de censura e manifesta abertamente, para quem tiver coragem de abrir os olhos, o perigo que existe para a liberdade na prática, não obstante a consagração de Portugal, como um Estado de Direito democrático.
No passado, houve um líder político que ‘caiu da cadeira’ e a sua queda assinalou o início do percurso feito de lutas em direção à tão aguardada vitória da democracia em 1974. “Porque é que se chama Revolução dos Cravos?”, é a pergunta inocente que oiço crianças colocar e curiosamente aquela, que também eu quando criança, não desvelava a razão de ser. Mas o sentido simbólico indexado aos cravos singrou historicamente. Cravos vermelhos foram as flores colocadas no cano das espingardas dos soldados, como poderiam ter sido outras, mas o feliz acaso da sua cor coincide com o sangue que ‘nos’ corre nas veias, e contrastou justamente por simbolizar aquela que se sagrou como a revolução omissa de derramamento de sangue. Não queiramos, numa atitude precipitada e infantil, conduzir a uma nova queda da ‘cadeira’, cujo desfecho se torne algo diferente, porque ainda que aparentem ser uma panaceia preferível face aos problemas que enfrentamos, os ideais divergentes nem sempre significam algo bom, e nada garante que a nova mudança seja celebrada com cravos vermelhos.