Esta entrevista é o testemunho de um ex-combatente que lutou muito pela vida na Guerra de Independência de Angola, ficando com marcas profundas destes tempos, para sempre.
Joaquim Ferreira Touguinha, nascido a 31 de março de 1940, por volta das onze e meia da noite, na Póvoa de Varzim, tem, atualmente, oitenta e três anos. A sua mãe era doméstica e o seu pai era PolÃcia de Tabela (atual PolÃcia Municipal) e sapateiro. Teve vinte e quatro irmãos, mas, apenas seis sobreviveram até à idade adulta. Casou com vinte e seis anos, tem três filhos e cinco netos. É um adepto ferrenho dos seus clubes de futebol, o Varzim Sport Clube, do qual também é sócio, por ser o clube da terra e o Sporting Clube de Portugal, o seu clube do coração. Já visitou vários paÃses, entre os quais, Espanha, França, Itália, Noruega, Holanda, Hungria, Angola, São Tomé e PrÃncipe, Israel e Alemanha. A sua viagem preferida foi à Hungria, porque, um seu grande amigo de infância era húngaro e lhe contou todas as maravilhas deste paÃs. Tem o desejo de um dia poder conhecer o Brasil. O seu prato preferido é cozido à portuguesa e agricultura é o seu passatempo mais desejado, apesar de também adorar cozinhar bacalhau com massa para os netos. A frase motivacional que leva para a vida e que inspirou a sua neta do meio a escrever um livro e a prosseguir os seus sonhos foi “querer é poder”.
Tudo começou a 13 de setembro de 1962, quando embarcou para Angola. Joaquim Touguinha afirma que a viagem de ida foi agradável, pois, esteve a bordo do barco Timor, em primeira classe, onde a comida era boa, contrariamente à do porão, onde iam as tropas. Teve acesso a este lugar devido à sua graduação e foi premiado com um gabinete e quarto individual, onde tinha um serviço de qualidade, com acesso a tudo o que o comandante tinha, por terem criado uma amizade tão forte durante a viagem.
Primeiramente, foi destacado para a companhia “Pacassa” e encontrou um indivÃduo que lhe disse que iria substituir o herói Dantas. “Apanhei o maior cagaço da minha vida, pois, substituir um herói significava que me ia matar, porque, aquelas zonas eram horrÃveis”. Realça ter tido sorte por ter ido para o comando devido à sua especialização na área de informações, operações e reconhecimento. Estava destacado ao comando, à preparação das operações, mas, de vez em quando, tinha de fazer reconhecimentos. “Felizmente para mim, eram sempre de helicóptero ou de avião, o que tinha sorte, porque, o comandante nunca saÃa sem levar o escravo atrás dele.” Esteve neste ambiente, no batalhão 158, até ao dia em que estas tropas regressaram e foi transferido para o batalhão 155. “Disse mal da minha vida, o pior comandante que podia ter. Tinha um segundo comandante que era uma fera autêntica.” Proibiu o segundo comandante de entrar no seu gabinete, por este ser ultra-secreto e só o primeiro comandante ter o direito de lá entrar.
Mais tarde, foi transferido para Dembos. Evidencia que quem já ouviu falar da Pedra Verde, também tem conhecimento desta zona, a terrÃvel curva da morte. “Durante anos tive pesadelos com essa curva da morte depois de regressar, pois, tive a desgraça de que quando uma companhia vinha embora feliz da vida, 3MC´S caÃram numa ribanceira de cem metros e depois nós tivemos de ir buscar os corpos lá dentro, descer por cordas para os trazer para cima e essa companhia veio desfeita. Ainda hoje eu sinto isso, marcou-me, porque, nessa altura, perdi muitos amigos, muitos furriéis que comigo cursaram em Mafra e Aveiro; o meu irmão também perdeu lá a vida. Essa curva da morte era uma zona desgraçada, onde mas emboscadas eram permanentes.”
Joaquim declara que a sua primeira cama no terreno foi feita pelo próprio, com capim, uma manta por cima e outra por baixo, com uma cobra lá dentro. Mais tarde, conseguiu comprar, por cento e cinquenta escudos (corresponde a setenta e cinco cêntimos), a cama e o mosquiteiro de um amigo que ia mudar de serviço. Noutros tempos, passou a dormir por baixo dos “oneimogues” e das MC´S (carros de combate), debaixo de chuva.
“Eu não gosto muito de falar do tempo da guerra. Foi um tempo de fome, de miséria, em que querÃamos comer e tantas vezes a comida era feita de feijão cozido com massa e salchichas aos bocadinhos, em que nem se queria comer, isto no mato. Passamos fome, havia comida, mas, muitas vezes, nem os cães a queriam comer. A guerra foram momentos muito difÃceis para quem passou 30 meses lá, como eu passei”, refere bastante emocionado ao relembrar tantas perdas próximas e sofrimento ao longo do tempo.
Durante a guerra, a sua maior preocupação era se no dia seguinte acordaria, principalmente, quando soube que o adversário tinha morteiros 61. Com o conhecimento que tinha naquela área, sabia que um morteiro colocado no meio do morro atirado para cima do seu quartel, ficaria reduzido a nada. Apesar de muitas vigias, estavam cientes de que poderiam ser atacados, mas, felizmente, não aconteceu.
Na operação preparada para a Nova Caipemba, para a Roça de São José, centro de terrorismo daquela zona, apanharam material oriundo da Rússia, os morteiros 61 que o exército português não tinha.
Mais tarde, tiveram o morteiro 81 que, apesar de não ser tão potente como o 61, já era um progresso. Descreve que o morteiro 81 “é um cano grande, composto por um tripé, que está encostado e tem um prato grande que é um bujão e pesa umas dezenas largas de quilos”; eram precisos três militares para o carregar, um levava o morteiro, o outro o tubo e o último, o prato e as munições, onde cada uma era muito grande e pesada. Já com o morteiro 61, bastava fazer uma cova na terra e já se disparava. Um militar tinha muito mais facilidade em fugir logo depois de ter disparado e ninguém o conseguia apanhar; este morteiro é constituÃdo por uma bomba pequena que é colocada dentro do cano e dispara de seguida.
Joaquim confessa que a sua maior inspiração e força para lutar e sobreviver durante a guerra foi Deus, pedindo-lhe força para aguentar todas aquelas atrocidades.
A guerra influenciou a sua vida, trazendo-lhe muita revolta, dor, sofrimento e desgosto em ver tantos companheiros partir. Menciona que quem deveria ir para a guerra não era a juventude, mas sim os que mandavam nos governos, os governantes. “Felizmente deu-se o 25 de abril e essa guerra aos jovens foi evitada, senão ainda hoje os nossos filhos e netos estariam lá.” Explica que estes não sabem o que os capitães de abril e muitos sargentos dessa época fizeram por eles. “Muita gente poderá queixar-se que perdeu muito do que fez em Angola, em Moçambique, ou noutros sÃtios, mas, eu que lá estive e que aguentei pretos (não queriam que lhes chamassem negros, diziam que eram pretos), que me adoravam porque sabiam que comigo podiam contar, que eu não era falso e que os ajudava naquilo que havia para fazer.”
Joaquim descreve aqueles povos e os seus territórios com muita sensibilidade; as mulheres cheias de filhos, um na barriga, outro à s costas e os outros pela mão e o homem cavava a lavra (terra), mas, descansava durante seis meses, pois, só podia fazer outra lavra passado esse perÃodo. A mulher cavava, trabalhava, fazia tudo. “Geralmente, a mulher é que era a escrava, ele só tinha o trabalho de fazer filhos, o que era bom. Só sabiam comer e beber, faziam aguardente e estavam sempre bêbados.”
O entrevistado confidencia que, durante este perÃodo tão duro, perdeu o hábito de fumar, deixando por completo este vÃcio, devido à falta de tabaco nestes territórios e à dificuldade de acesso.
Por fim, Joaquim Touguinha, conclui que os jovens devem aproveitar o que têm e não destruir com drogas nem com maus juÃzos, pensando que os pais e os avós construÃram um paÃs grande, onde estão criados muitos ladrões.