Carlos Alberto, ex-fotógrafo de profissão, conta-nos sobre a realidade portuguesa antes do 25 de Abril. Entre censura, repressão e autoritarismo, entrega-nos fotos sob a forma de palavras, numa viagem em que revela os rolos empoeirados da ditadura, muito esquecidos nos tempos contemporâneos.
Por Camila Luís e Afonso Vasconcelos
Numa realidade em que a liberdade está plantada desde que nascemos, pode ser difícil compreender que o simples ato de falar já foi motivo suficiente para se ser preso, violentado, exilado, ou até mesmo, morto. Para perceber o hoje, é crucial conhecer o ontem através de quem o viveu e sentiu na flor da pele. Carlos Alberto Rodrigues Santos, de 75 anos, foi a voz do passado que nos permitiu recuar aos tempos da velha guarda, sobre a qual uma nuvem repressiva assolava Portugal – o Estado Novo.
Natural do Bussaco, cresceu rodeado pela natureza até completar o seu décimo aniversário, visto que se mudou para Coimbra pouco tempo depois. Agora, residente há 65 anos na cidade dos estudantes, não hesita ao dizer: “Sou mais de Coimbra do que de lá”. Estava um dia ensolarado no coração da cidade de Coimbra, que contrastava com a frescura do café Santa Cruz, estabelecimento que Carlos Alberto conhecia perfeitamente, desde o espaço aos seus trabalhadores, que o cumprimentaram com o entusiasmo de quem o bem conhecia.
Neste cenário, recorda os seus tempos de jovem quando começou a trabalhar: mal terminou a 4.ª classe, foi empregado como fotógrafo num estabelecimento localizado numa rua mesmo em frente ao café, e do qual se despediu quando chegou a hora de se reformar. Nascido em 1948, Carlos Alberto foi mais uma entre milhões de vítimas da ditadura. O antigo fotógrafo relembra estes tempos pela sua “miséria pura” traduzido na carência e no retrocesso do país. Os que sabiam ler eram uma minoria privilegiada, visto que o analfabetismo era o cenário mais apetecido pelos que lideravam. “Naquele tempo governa-se com a ignorância do povo”, realça o entrevistado.
Contudo, reconhece que a falta de liberdade era o que o mais atormentava. Um mero encontro de amigos, hábito comum do presente, para os “bufos” (termo que usa para se referir à PIDE) era de imediato visto como suspeito. “Qualquer coisinha já seria anormal, 5 pessoas estarem a conversar já era uma revolução que estariam a organizar”, relata. Numa realidade onde conseguimos respirar livremente, torna-se inconcebível compreender o sofrimento de um povo que nem em casa se conseguia livrar das amarras da censura. Entre suspiros penosos, Carlos Alberto conta: “a perseguição era terrível, os jovens não calculam o que era o Estado Novo naquele tempo”
O seu refúgio até certa altura era o Ateneu, local onde os opositores do regime se podiam fazer ouvir sem esperar a PIDE ao virar da esquina. Contudo, nem este centro de liberdade sobrou para o povo, visto que “os bufos”, infiltraram-se. ”Estavam lá como se fossem sócios, foi duro. As pessoas confiavam, depois começavam a falar o que não deviam e lá estava a denúncia.”, descreve o ex-fotógrafo.
Para somar a todas as desgraças, no ano de 1961, deu-se início à Guerra Colonial, que elevou a necessidade do recrutamento militar. Muitos tiveram o infortúnio de sentir este banho de sangue que se estendeu até à década de 70′, visto que o serviço militar era obrigatório e poucos escapavam. Tal como milhares de jovens que se viram obrigados a deixar o seu país para escapar à guerra e à miséria, o conimbricense de coração não foi exceção. Aquele que seria mais um dia comum de trabalho tornou-se numa data lembrada até hoje, pois a PIDE apareceu no local e levou-o para a sua sede.
O fotógrafo tinha-se ausentado no dia em que tinha de se apresentar na tropa, no entanto, o seu verdadeiro crime foi achar que podia ter liberdade de escolha. No meio de todo o azar, Carlos acabou por ser um dos sortudos, visto que não foi agredido pela polícia política, ao contrário de muitos dos seus amigos. Contudo, apesar de não ter sido violentado, a gentileza não era um traço de personalidade dos agentes que o interrogaram. “Ninguém me serviu cafezinho”, disse e riu-se em seguida.
Após um interrogatório que parecia não ter fim, Carlos Alberto foi obrigado a cumprir o serviço militar, tempos retratados pelo próprio como muito difíceis. Foram 36 meses a ser mal tratado, dos quais destaca os fins de semana cortados ou a execução dos piores serviços, por ser visto como um desertor. No entanto, não foi apenas no serviço militar que o fotógrafo sentiu a dureza da vida. A adversidade esteve presente desde cedo, e aos quatro anos, numa idade em que a inocência é o nosso melhor amigo, ficou órfão. “Mudou a minha vida inteira”, disse emocionado. Apesar dos dissabores que a vida lhe proporcionou, deu a volta por cima e encara-os como cruciais para ser a pessoa que é hoje. “A levar porrada é que aprendemos”, afirma, novamente de sorriso montado.
Sem imaginar o que estava por vir, o dia 25 de Abril de 1974, que para si era só mais um dia de trabalho, representou uma reviravolta na sua vida. Foi durante o seu ofício que um vizinho lhe deu a notícia de que estava em curso uma revolução. A partir desse momento, todos os que lá estavam ficaram colados às notícias da rádio e “passavam o tempo na rua a conversar e informar-se”, descreve. Segundo o ex-fotógrafo, foi assim que percebeu “que estava a acontecer algo especial”.
Após ter vivido quase três décadas de ditadura, Carlos Alberto só conseguiu ver a luz da esperança, a partir do momento em que teve conhecimento do golpe militar. No entanto, as expectativas de que algo melhor estaria por vir surgiram acompanhadas de ansiedade e receio, devido aos quartéis militares, que não aderiram de imediato ao movimento. Só após todos se terem juntado à revolução é que, pela primeira vez em muitos anos, Carlos pôde respirar de alívio. “Até gente que não tinha o mínimo de instrução política se juntava às comemorações”, relembra.
Com o 25 de Abril, semeou-se um futuro a cores, espelhado no encarnado dos cravos empilhados nas armas dos militares que levaram a luta de Abril avante. Carlos Alberto podia dizer muitas palavras, mas nenhuma parecia ter o mesmo gosto para si do que “liberdade”. Segundo o ex-fotógrafo, por mais que se aprendam e recordem esses tempos, jamais as pessoas de hoje saberão o que é viver sem liberdade até serem privados dela. “Embora estejamos num país com tantas carências, ser livre para o dizer é tão bom!”, exclama ao relembrar a altura em que os problemas não podiam ser exteriorizados.
Ao mergulhar novamente nas suas memórias, o entrevistado recorda a altura dos movimentos estudantis. A agitação, o cenário cercado, pessoas a atirar comida pelos telhados para ajudar os que estavam sitiados. Carlos Alberto assistiu a tudo, mas lembra esses tempos difíceis com um sorriso, pois nesta altura, ao contrário de hoje em que este sentimento parece dissipar-se, ainda havia um espírito revolucionário e uma vontade de reivindicar por parte dos jovens. Numa época em que o analfabetismo reinava, a cultura era o grande inimigo do Estado Novo, pois permitia o povo pensar e refletir, algo que não favorecia a narrativa do regime. “Foram os estudantes que fizeram despoletar parte da revolução”, garante ao frisar a importância dos jovens, que “tinham acesso à cultura”, e “sabiam que havia um mundo para além do nosso”.
Uma das grandes preocupações de Carlos Alberto é que estas histórias continuem a ser contadas, e não deixar que a poeira do passar do tempo as cubra, incapacitando os mais novos de reconhecer a importância dos ideais de Abril. “Falta qualquer coisa revolucionária a esta geração”, lamentou o ex-fotógrafo.
No entanto, nem tudo foi perfeito, e viveram-se tempos muito complicados no período pós-revolução, com a chegada do PREC. Foram meses conturbados, com uma grande movimentação social e política, nomeadamente a tentativa de criação de poderes paralelos nas Forças Armadas. “As sedes dos partidos começaram a ser assaltadas, especialmente do PCP”, reforça Carlos Alberto, que frisa a demora que o país teve em estabilizar-se e reerguer-se no pós-25 de Abril.
Ainda assim, para o ex-fotógrafo, muitos dos ideais de Abril vão se perdendo à medida que o tempo passa: “Acho que se devia falar do 25 de Abril todo o ano, os jovens precisam saber o que foi a ditadura”, defende, realçando a importância da juventude para preservar os valores democráticos. Para Carlos Alberto, é essencial “cumprir as promessas da Revolução dos Cravos”, entre as quais se enquadram, o ‘pão’, o ensino ou a habitação. “Vemos todos os dias pessoas muito capazes que faziam tanto jeitinho ao nosso país que são obrigadas a ir embora, porque não preparam as condições para ficarem”, expõe entristecido pela situação atual do país. Assume ainda que contava que “em 50 anos o país estivesse muito mais evoluído”.
Apesar de todas as conquistas alcançadas pela luta de Abril, a liberdade não é uma realidade ampla e absoluta, e a censura continua a existir, embora “de forma mais dissimulada”, conclui Carlos Alberto. Numa altura em que a ascensão da extrema-direita se faz sentir cada vez mais, o entrevistado apela à consciência dos jovens, que têm o futuro do país nas mãos. “Há uma grande percentagem de jovens a votar no Chega, é preocupante”, admite. É com palavras de mudança e esperança na nova geração que Carlos Alberto se despede, ao colocar toda a ênfase nos ideais de Abril, que não devem ser esquecidos. Afinal, como dito anteriormente, podemos enfrentar muitos problemas, mas ser livre para os apontar é insubstituível.