Os 50 anos do 25 de abril assinalam meio centenário de esperança, perseverança e acima de tudo, liberdade. Com este marco, aproveito para desconstruir uma ideia intemporal. Devo avisar que este texto é escrito por alguém que venera o “desporto-rei”.
A Revolução não se deu apenas de um dia para o outro, nem apenas numa marcha na madrugada de 24 para 25. No dia 17 de abril assinalaram-se 55 anos da Crise Académica de 1969, uma das provas que o povo português estava acordado e pronto para a luta. Nessa medida, a cidade de Coimbra recebeu o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, para inaugurar o mural de Alberto Martins, à época presidente da Associação Académica de Coimbra (AAC), que protagonizou um dos momentos mais emblemáticos da resistência estudantil ao dirigir-se a Américo Tomás, pedindo a palavra enquanto este procedia a cerimónia de inauguração do novo edifício do Departamento de Matemática da Universidade de Coimbra. Pedido este que lhe foi recusado, o que gerou uma enorme revolta e o início do luto académico de ’69.
Muitos são aqueles que não conhecem a importância do academismo no seio revolucionário que Coimbra representa. Com isto, a relevância do desporto na AAC é intrínseca ao uso do mesmo para dar voz pelas causas que esta representa. Nesse mesmo ano, a Secção de Futebol da AAC disputava a final da Taça de Portugal no Estádio Nacional do Jamor, que foi palco de mais uma demonstração de descontentamento dos jovens portugueses que, com cartazes, bandeiras, faixas e a sua voz, reivindicavam aqueles que viriam a ser os valores de abril de ’74.
Sem margem para dúvidas, aquela final do Jamor serviu de comício contra o regime. No final, camisolas trocadas entre as equipas, jogo terminado, Benfica vence no campo. Para Alberto Martins, as águias “venceram no campo, mas a Académica venceu na luta pela liberdade”. Coimbra tinha esse poder de separar as coisas, ou de usar uma em prol da outra. Nesse mesmo jogo e após a derrota, nenhum dirigente do Governo português estava presente e o capitão dos encarnados “emprestou” a taça para que os jogadores da Briosa pudessem exibi-la a todos aqueles estudantes que se tinham deslocado a uma só voz para apoiar os alvinegros, mas sobretudo para reivindicarem a sua liberdade.
Em 1970, à chegada ao aeroporto, a equipa dos estudantes foi surpreendida com um autocarro que os levaria para o hospital onde se encontrava combalido António de Oliveira Salazar, para que com a presença dos órgãos de comunicação social, se pudesse criar um aparato de apoio de Coimbra, nesse ano já quase que como uma região independentista, à ditadura e ao estado do ditador. O documentário “Futebol de Causas”, de Ricardo Martins, demonstra aquilo que era a vida destes atletas, numa visualização quase obrigatória para os amantes do futebol e, principalmente, da democracia.
O futebol era comandado por Salazar durante o fascismo, sendo considerado o “ópio” da população. A política e este desporto estavam casados numa ideia de ocupação intelectual das pessoas, servia quase como arma política, uma atividade ao domingo à tarde para esquecer a miserável semana de trabalho a que estavam sujeitos. No entanto, este matrimónio num país democrático deve sujeitar-se ao divórcio, à separação da atuação dos mesmos.
As gerações mais novas não têm por hábito discutir política à mesa, mas sim os resultados das suas equipas no fim-de-semana que passou. Isto sozinho, demonstra a relevância do desporto para o povo português, não fosse grande parte do espaço mediático ocupado por debate futebolístico. É precisamente nesta zona que a relação entre o futebol e a política se veem interligados. Nestes programas, findados os jogos, começa-se o debate. O mesmo se assistiu no acompanhamento aos debates eleitorais: findado o debate, começa-se a discussão de quem esteve melhor na partida, quer dizer… não se sabe bem o que acabou de acontecer. Os candidatos discutem, os comentadores comentam, outras pessoas comentam o que os comentadores comentaram e também esses mesmos estão sujeitos a críticas, uma confusão desenfreada.
A nossa democracia poderá estar a pecar neste sentido. Noutros tempos, realizavam-se, sem tempo previsto, uma verdadeira conversa entre os candidatos. Tome-se como exemplo o icónico debate que sentou ao mesmo tempo Mário Soares, Francisco Sá Carneiro, Álvaro Cunhal e Freitas do Amaral que contou com uma hora e meia de argumentação. Noventa minutos não serão demais para uma simples argumentação sobre o poder local? Nunca na vida veria isso… deixa cá mudar de canal que vai começar agora o jogo entre o sexto e o nono do campeonato holandês (também sou um pouco culpado nisto). Isto sim, noventa (ou mais) minutos bem passados.
Os próprios políticos acabam por se tornar jogadores de futebol e o seu partido um clube. Ainda há quem vote não naquilo que um programa eleitoral apresenta, porque toda a vida votou o mesmo, têm um lugar cativo no estádio do seu partido. Isto gera desinteresse e, pior, um voto desinformado, incoerente e ingénuo. O clube do coração é o partido e quero sempre que ele ganhe, mesmo que a gestão seja má.
É impossível dizer que, em Portugal, o futebol tem uma importância mais pequena do que a política quando temos ministros a pedir para acabar mais cedo a sessão na Assembleia da República para ter tempo de chegar ao estádio do seu clube ou quando o prémio para os médicos que deram a sua vida para ajudar durante o tempo da Covid-19 foi, veja-se lá, receber a final da Liga dos Campeões em Lisboa.
Parece que em Portugal os 3 F’s (Futebol, Fátima e Fado) mantêm-se. Conseguiu-se usar a recepção de uma fase final de uma prova europeia de futebol como a salvação de uma pandemia global. Finalmente o Papa Francisco veio a Portugal. Quanto ao fado, no futuro, acho que devemos tornar a Ana Moura comendadora. Seria o mínimo.
A verdade é que, pelo menos no futebol, a equipa une-se na luta pelo mesmo objetivo e para defender as cores que representa. Quanto ao valor dado à nossa democracia, a sociedade entra em conflito e remata para lados opostos.