Numa época definida pela linha ténue entre o conservadorismo e a repressão, as Maria’s Liberdade já nasciam com o seu lugar prometido à cozinha e às tarefas de casa, sem nunca conhecer outra realidade ou colocar esta em causa.
A educação das mulheres passava de casa em casa, começando nas de suas mães, passando pela da mestra – para aprender a costurar -, para acabar na casa dos maridos, onde se limitavam a cumprir os deveres que lhes foram incutidos: tratar da casa e da família, não fosse o lema do regime “Deus, Pátria e Família”.
Depois da quarta classe, Maria, hoje com 73 anos, não quis continuar na escola por escolha própria (apesar dos esforços da mãe para que continuasse), mas reconhece que muitas vezes faltava o poder de decisão àqueles que queriam prosseguir os estudos.
“As mulheres raramente iam estudar. No meu tempo já iam mais, mas eu não quis, tinha medo da matemática”, confessou entre gargalhadas ao recordar como era o ensino na altura e como os professores eram temidos, impondo respeito com as famosas reguadas de Salazar.
O respeito vinha daí, da etiqueta do Estado Novo, onde a entrevistada revelou que o próprio medo superava o respeito e, por isso, “nem sabendo as respostas abriam a boca”.
À pergunta “Que querem ser quando forem grandes?”, apenas uma pequena porção da turma (só de meninas, não haviam turmas mistas) respondia outra coisa qualquer que não “Dona de casa!” com grande entusiasmo e sorriso no rosto, atitude que a professora congratulava.
Desta forma, estava refletida a maneira como o regime moldava o ensino e as mentes das pessoas, com crianças a sentir, desde cedo, que o seu dever era servir, nunca sonhando além disso.
As mulheres estavam proibidas, por lei, de exercer uma variedade de profissões, sendo que, só depois da revolução, é que a concessão de diplomas à magistratura, à carreira administrativa local e à carreira diplomática abriam as portas à especialização da mulher.
Altos cargos e profissões dignas do respeito de todos não lhes estavam destinados, pois estava claro que não tinham lugar. Mulheres? As que ascendiam socialmente “eram quase todas professoras da primária”.
Não era qualquer uma que conseguia a proeza de chegar a professora, era um direito quase restrito às famílias mais abastadas.
As restantes, ou ficavam por casa a aprender o futuro ofício, ou então iam servir para as casas das famílias mais ricas da terra e eram, muitas vezes, escravizadas, “tinham que se sujeitar a essas condições para viver, havia muita pobreza”.
“Não se via uma mulher a representar nada, só os homens é que tinham um emprego (…) finanças, alfaiates, bancário (…) e era assim”
Maria
Na altura, antes do golpe de estado, eram livres de sair, mas sempre acompanhadas pela mãe, avó, tia, prima, mas nunca sozinhas e, segundo Maria, era o elitismo social que não o permitia e apenas a classe mais endinheirada podia sair à rua desacompanhada sem julgamento.
Nascida e criada numa pequena vila alentejana, Maria diz que a pressão exercida pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) “não se sentiu muito” e apontou o facto de ser oriunda de uma família humilde e “bem-comportada” como a causa de nunca ter sido intercetada.
Porém, recorda-se de ver algumas situações na rua, por exemplo, quando grupos de pessoas se juntavam em aglomerados na rua, depressa chegavam ouvidos opressores à conversa.
Este era um procedimento “normal” para garantir que os populares não se insurgiam contra o regime e impedir a disseminação de ideais revolucionários
A única ação da PIDE que lhe foi mais próxima foi na casa da família do marido, Zé, um ex-soldado que exercia funções de operador criptoanalista, o responsável que “recebia as mensagens secretas e as descodificava”, tratando-se de uma tarefa sigilosa.
“Quando o Zé estava lá para o Ultramar a PIDE vinha mais de quantas vezes a casa dos pais dele saber de ele dizia alguma coisa que não devia”.
Maria
Germinava um clima de desconfiança entre os civis e não se sabia em quem confiar.
As pessoas deixaram de conversar abertamente e o medo das consequências que podiam enfrentar foi crescendo e, aos poucos, foi-se perdendo a voz.
Esta “Maria Liberdade” tem bem presente na memória o dia em que tudo começou a mudar.
Estava em casa a acompanhar o pai enquanto trabalhava quando ouviu o vizinho passar rua acima bradando pela janela “Liguem a telefonia! Houve um golpe de estado!”.
Lembrou o dia dos cravos como um peso saído dos ombros de todos.
“Na minha família ninguém apoiava, estava tudo deserto que o regime mudasse. Foi uma coisa naquele dia… Parece que estou eu a ver o 25 de abril…”
Maria
Ainda assim, foram muitas as corajosas que se ergueram e lutaram por todas as vozes das mulheres logo após o fim do regime.
Foi o caso das 3 Maria’s Liberdades fundadoras do Movimento da Libertação das Mulheres (MLM) em maio de 1974.
Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno deram os primeiros passos na luta pela igualdade de género nos mais diversos contextos: sociais, culturais, laborais e económicas.
As “Três Marias” ficaram conhecidas pelas suas iniciativas na defesa dos direitos das mulheres e pela autoria do livro apreendido pelo Estado Novo
Na imagem vemos Maria Teresa Horta a erguer o cartaz “Mulheres uma força política” e ao lado de Maria Isabel Barreno, numa manifestação do Movimento de Libertação das Mulheres (MLM).
A visão que estes testemunhos nos dão levam-nos a uma reflexão acerca da proximidade temporal e social entre a realidade vivida pelas Maria’s de hoje e as Maria’s de outrora.
As Maria’s da Liberdade da democracia falam hoje por aquelas que, oprimidas e reduzidas, foram silenciadas durante décadas. São 50 anos que nos separam da era marcada pela opressão e falta de liberdade, mas as lutas por igualdade e justiça para as mulheres e a sociedade em geral continuam a marcar presença até aos dias de hoje.