O jornalismo em formato digital é cada vez mais apetecível e acessível para todos. Nesse contexto, têm surgido em Portugal projetos de jornalismo digital que abordam temas diferenciados daqueles que estamos habituados a ler no nosso quotidiano. Um exemplo desses projetos jornalísticos inovadores é o “Fumaça”, um meio de comunicação digital e independente que além de abordar conteúdos distintos conta também com podcasts.
A ideia surgiu de 4 amigos com gosto por podcasts estrangeiros que ambicionaram trazer a magia do áudio para Portugal, para abordar temas pouco escrutinados e dar voz a pessoas com pouca visibilidade.
Aqui podemos ler uma entrevista realizada, em 2021, a Maria Almeida, uma jornalista do “Fumaça”, que nos conta todos os detalhes deste grandioso projeto:
P: Então vamos começar pela génese do jornal, como é que tudo aconteceu. Eu vi que fez parte da fundação do jornal. Explicar um pouco a génese do jornal.
M: Isto foi mais ao menos em 2016 e foi numa altura em que eu e o Ricardo, e também na altura o Tomás, ouvíamos muito podcastas, mas todos eles lá de fora, dos Estados Unidos, como o “Democracy Now”, “This American Life, “Embedded Intercepted”, e começamos a pensar “Porque é que não há nada desse género cá em Portugal?” Nós gostávamos de saber mais sobre estes temas, entrevistar este tipo de pessoas, mas cá não encontramos nada do género. Então pensamos “Porque é que não fazemos nós um podcast de entrevistas?”. A génese do “Fumaça” sempre esteve em nós entrevistarmos pessoas que nós sentíamos que não tinham tanto espaço nos meios tradicionais, falar sobre temas que nós achávamos que não eram tão escrutinados, não tinham essa visibilidade nos meios maiores e depois acabamos por nos juntar todos. Nós gravamos os primeiros episódios em casa, fazíamos outros trabalhos para além disso, fazíamos investigações e entrevistas ao fim de semana e à noite quando tínhamos tempo livre e depois foi crescendo a partir daí.
P: E o nome “Fumaça” como surgiu?
M: Veio de uma sessão de brainstorming muito esquisita, porque nós não tínhamos nome, então juntamo-nos todos e eu na altura disse que tínhamos de pensar num nome e que podíamos fazer uma sessão de brainstorming, escrever num papel todos os nomes que nos vierem à cabeça, não há certo nem errado. Eu na altura, um dos nomes que eu tinha posto, não sei porque me ocorreu isto, mas foi fumaça e o Ricardo lembrou-se de uma intervenção do Pinheiro de Azevedo, antigo primeiro-ministro na altura do PREC, curiosamente até está no arquivo da RTP, e ele lembrou-se disso, porque há uma
manifestação, uma greve, que se chama greve dos padeiros e basicamente há umas pessoas que estão a queimar umas bandeiras na parte de trás e ele está no palco e diz “O povo é sereno, o povo é sereno, é apenas fumaça”. Então começamos a trabalhar a partir daí e a achar graça ao que o Pinheiro de Azevedo dizia e, portanto, não é nenhuma metáfora, é aleatório.
P: Disse que vocês fazem podcasts. Eu estive a ver o vosso site, têm uma secção de newsletters, entrevistas, reportagens. Tem muitas reportagens e entrevistas escritas, e o conteúdo dos podcasts, onde é possível encontrar?
M: Tudo aquilo que nós fazemos é áudio, o que está no site, algumas reportagens e episódios de séries, estão as transcrições no site porque nós temos que as fazer, mas a grande parte do nosso trabalho nem sequer tem transcrição, ou seja, ouves os podcasts nas apps de podcasts, portanto o site nem é nossa a grande, as pessoas que nos ouvem não ouvem no site, ouvem nas apps de podcast.
P:O jornalismo que fazem é mais de investigação, como é que vocês selecionam as informações que querem transmitir? Porque não é exatamente formato de dar as notícias, é mais falar acerca de um tema, pelo que eu percebi. Como é que selecionam?
M: No fundo, muitas das grandes investigações que nós fizemos partiram da nossa própria curiosidade porque nós quando decidimos fazer uma investigação nós demoramos muito tempo a fazê-la, e eu acho que esse é um dos grandes privilégios do “Fumaça” e uma das razões pelas quais eu gosto tanto do projeto é que nós damos tempo para pensar, trabalhar, investigar, para entrevistar, para pensar um bocadinho mais sobre aquilo que nós estamos a fazer, e ter mesmo a certeza que quando publicamos que estamos confortáveis com aquilo que estamos a publicar, a publicar a informação correta, que de certa forma estamos a responder às perguntas que fizemos inicialmente antes de começarmos a investigação. Mas os temas têm muito a ver com o nosso interesse pessoal, porque se vais passar 2 ou 3 anos a investigar uma coisa tens mesmo que gostar, porque se não gostares
vai ser um inferno na tua vida.
P: Na secção das séries tem reportagens mais detalhadas, o caso da Palestina, vocês deslocaram-se mesmo até lá para realizar o trabalho jornalístico. E tem em formato podcast ou está apenas no formato escrito?
M: Está tudo em podcast, as séries também. Aliás é curioso porque nós no início no Fumaça fazíamos entrevistas, depois começamos a fazer reportagens e agora já quase fazemos reportagens, só fazemos séries. Séries porque quer dizer, tem muito a ver com o formato, as séries são grandes investigações e que depois nós lançamos como séries de podcast, e são vários episódios, mas sim temo-nos focado cada vez mais nisso.
P: Sendo um jornalismo em formato podcast consideram que o vosso jornalismo é focado no digital porque vocês têm o website e redes sociais, consideram-se jornalismo digital?
M: Sim, sem dúvida.
P: E em relação a serem uma plataforma de jornalismo independente, porquê o jornalismo independente e não tentar procurar um trabalho de jornalista numa redação conhecida, porque decidiram ser independentes?
M: É engraçado porque nós quando começamos isto, eu e o Bernardo é que tínhamos alguma base de jornalismo. Eu tinha feito jornalismo, mas acabei por não trabalhar nessa área. Eu porque quando saí da faculdade não estava disposta a fazer um estágio em que me pagavam apenas o subsídio de alimentação e transportes e sem qualquer perspetiva, porque na altura eu acabei o curso em 2012 e na altura as redações não estavam a
contratar, estavam todas a despedir, foi um bocadinho difícil, mas também me desiludi um pouco com o curso em si porque achei que não dava muito para experimentar novos formatos, era muito rígido, em estruturas muito bem definidas, e eu irritei-me um bocado com isso então decidi fazer outras coisas. Ou seja, o Fumaça quando começou nós queríamos fazer um podcast, não era necessariamente jornalismo, só que depois fomo-nos apercebendo mais ao longo do tempo que o nosso trabalho e o que nós fazíamos era sem dúvida alguma jornalismo. A independência tem muito a ver com a forma como nós tomamos as decisões e para nós essa independência são jornalistas que têm a redação e que tomam todas as decisões do futuro do projeto e o que é que nós vamos fazer, e é por isso que nós somos independentes, eu acho que é muito diferente de trabalharmos num grande meio, nós queremos dar todas as condições de trabalho às pessoas que trabalham connosco, queremos salários com contratos dignos e somos muito
transparentes nesse aspeto, ou seja, eu acho que nós a partir do momento que profissionalizamos o fumaça e em que isto passou a ser mesmo o nosso trabalho, de certa forma, nós sempre quisemos fazer as coisas de forma diferente.
P: Falou de ser o primeiro projeto de jornalismo português totalmente financiado por quem vos ouve. Como querem atingir esse objetivo?
M: No início quando nós começamos o Fumaça e dissemos às pessoas, começamos a falar sobre as nossas ideias toda a gente achava que nós estávamos malucos da cabeça porque era impossível, ninguém compra jornais, ninguém dá dinheiro, ninguém tem subscrições, etc. Mas depois as pessoas foram-se habituando um bocado a esse modelo, não tanto em projetos jornalísticos, hoje em dia mais, mas nós na altura, quer dizer se fosses perguntar há 5 anos se calhar muito pouca gente tinha Netflix e Spotify, hoje em dia já é completamente diferente e nós beneficiamos um bocado disso. Mas nós na altura quando decidimos seguir por esse modelo, era aquele que nos fazia mais sentido, era aquele que nos dava mais independência porque nós achamos que o jornalismo é feito para as pessoas, e mesmo as pessoas que nos ouvem não devem ser meras espectadoras, também devem dar sugestões, críticas ao nosso trabalho, sugerir pessoas que nós possamos entrevistar, temas a abordar, etc.
P: E vocês têm aquela tabela com os preços, que é para quem quiser subscrever. Ou seja, vocês pedem para se pagar para se ouvirem os podcasts?
M: É assim nós não vedamos o conteúdo, ou seja, mesmo que não contribuas tu vais sempre continuar a ouvir o nosso trabalho jornalístico, nós nunca quisemos vedar conteúdo, nós não temos conteúdos jornalísticos premium, porque nós acreditamos que a informação é um bem público e que o jornalismo é fundamental para a nossa democracia, portanto para nós não faz sentido estar a vedar as pessoas de aceder a esse conteúdo, mesmo que elas não consigam pagar.
P: Vocês foram conseguindo ter a confiança da pessoa há medida que iam ouvindo o conteúdo. E o que é que vos diferencia dos outros canais de podcast?
M: Eu acho que é mesmo o facto de fazermos jornalismo de investigação, porque hoje em dia tens cada vez mais podcast em Portugal, mas são de entrevistas, reportagens de atualidade. O que nós fazemos é jornalismo de investigação, e a forma como nós contamos as histórias, nós temos um cuidado enorme na forma como contamos as nossas histórias.
P: Quais são os benefícios que destacam do jornalismo independente?
M: Eu acho é que é aquilo que eu dizia há pouco, de sermos nós a tomarmos as decisões como jornalistas, e a ditarmos o futuro do nosso órgão de comunicação social, para nós é super valioso e tem consequências no nosso trabalho, porque é aquilo que eu dizia também há pouco que tem a ver com o privilégio que nós temos, que é nós termos tempo, que é uma coisa que poucos jornalistas em Portugal têm, nós temos tempo para pensar nas coisas que fazemos e não temos aquela constante pressão com publicar coisas, nós queremos muito publicar coisas, mas só o vamos fazer se nós tivermos a certeza absoluta de que aquilo está pronto para ser publicado, às vezes demora mais tempo.
P: O que é que destaca de menos bom neste formato do jornalismo independente, e também nas redes sociais?
M: Se queres que te diga, o facto da independência não vejo assim grandes pontos negativos porque, quer dizer, se que quisesse fazer outro tipo de jornalismo, se quisesse fazer atualidade sim, mas fazer jornalismo de investigação acho que há muitos poucos sítios que permitam aos jornalistas fazer o trabalho que nós fazemos com o Fumaça. Em relação às redes sociais, há sempre uma preocupação muito grande porque eu sinto que há muitas
pessoas que consomem só informação nas redes sociais e ficam pelos títulos, não vão ver mais, fazem muitos comentários sem ler as coisas e acho que isso ás vezes cria-se ali uma comunidade um bocado tóxica, e nós ás vezes sofremos muito com isso, há muita gente que vai para as nossas contas de Instagram e Twitter e Facebook e só dizem disparates, mas o nosso conteúdo não é consumido naquelas redes, as pessoas que mos ouvem vão ouvir para outras plataformas, mas preocupa-me às vezes em parte o conteúdo que nós fazemos não chegue a mais pessoas e acho que é isso.
P: Muito obrigada por disponibilizar o seu tempo.