No último dia 6 de março, a Barbie, boneca mais icónica do mundo, celebrou o seu 65º aniversário. E embora a beldade loira, branca, elegante e estilizada, tão ilusória e utopicamente concebida pela sua criadora, Ruth Handler, visasse tão somente possibilitar o sonho a todas as meninas no ato de se reinventarem e imaginarem num tão aparente perfeito universo, hoje reconhecemos que aquele ícone representava e perpetuava a construção, enraizamento e transmissão de um arquétipo dominante de figuração feminina indelevelmente atingível na sua forma e indesejável no conteúdo característico e firmado como permitido ao papel de mulher.
Desde o seu ‘nascimento’ até ao corrente, a boneca-brinquedo, tal como a mulher, sofreu as metamorfoses dignas que o tempo lhe concedeu, e que a evolução política e social do seu conceito atingiu através de ‘lutas’ mais ou menos veladas e destruidoras dos valores-ornamento que quais meros artifícios vazios insistiam na diminuição da mulher. Sim, a Barbie contribuiu negativamente para a conceptualização de uma representação de percepção de feminilidade errada, padronizada e discriminadora, não obstante desprovida no intuito criador que lhe subjazeu, ao considerar a mulher tão só enquanto mulher-objecto – uma mulher cuja existência teria como fim último ser olhada e contemplada pela beleza da qual se dotada, então merecedora de ser e de se dizer mulher.
De facto, as representações não se apresentam como o espelho da realidade, designando-se, à luz de Walter Lippmann, como imagens mentais que se interpõem entre o indivíduo e a realidade, pelo que a cautela se impõe. Impõe-se perante a perigosidade de se generalizar a utilização de versões tão redutoramente hiper-simplificadas dessa realidade. É o domínio do tão vulgarizado estereótipo, que tem em dada medida a sua utilidade, aceitemo-lo, mas dificilmente se ‘move’. É-lhe característico perdurar no tempo e tendencialmente parcial, pintando apenas uma lado da história, esta história que é a da mulher. E são estes estereótipos, dificilmente abalados por informações que os contrariem, que se materializam em imagens generalizadas e exageradas e “reduzem as pessoas a um pequeno conjunto de características simples e essenciais” (Stuart Hall).
Confusos? Eu não o estou. A mulher-sonho plastificada evoluiu sim, mas evoluiu em virtude dos movimentos contestatários que ao longo do tempo decorreram numa sociedade globalmente considerada na qual ser mulher equivaleu a hipóteses tão finitas quanto o ser e existir para servir os outros, para servir a família, os filhos e, sobretudo, o homem, qual mulher submissa que não vislumbrara ainda o que seria a sua emancipação.
Atualmente, a Barbie já não é mera figuração imaginada e já não somos nós, mulheres, que procuramos ser transportadas para aquele seu outrora idealizado universo. Agora é o universo Barbie que se imiscui da diversidade existente no nosso mundo, através da inclusão de uma multiplicidade de mulheres-bonecas, todas elas distintas e únicas na sua singularidade, todas elas aceites e dignas de ser admiradas, todas elas Barbie, porque ela hoje visa ser a construção da imagem de cada uma de nós.
Assim, neste dia 8 de março, dia da Mulher, dirijo-me a todas vós, mulheres, e felicito-vos. Felicito-vos pelo vosso compromisso sistemático em desempenhar os vossos papéis nesta sociedade. Numa sociedade onde embora as difíceis lutas pelo sufrágio, e esforços constantes visando a superação do paradigma da hierarquia doméstica ou o rompimento da percepção de mulher enquanto objeto sexual, ser mulher ainda é difícil, ser mulher ainda não simboliza equidade na sua plenitude, pois homens e mulheres não vivem em mundos iguais, e muitas vezes é a própria mulher que promove a irreal construção da sua imagem, que indiretamente a violenta, e é percursora de conflito interno na acepção de si mesma. Não desejo que ocorra fenómeno análogo à realidade vivenciada por Ken, no universo Barbie do filme protagonizado por Margot Robbie, cuja existência é o equivalente à realidade experienciada pela mulher. Ken é mero apêndice subalternizado a uma Barbie, não tendo qualquer propósito ulterior ou sentido para ele uma vida na qual a Barbie é personagem omissa, porque também Ken tem um papel, também ele tem uma voz que carece de se fazer ouvir e representar, pelo que, muito embora seja dia da Mulher, sinto que o meu dever é lembrar que isto não se trata exclusivamente da mulher. Trata-se de todos nós, mulheres e homens, que num mesmo mundo coexistem e convivem, e bom seria se o fizessem à luz do recíproco reconhecimento e visão de que um e outro, paradoxalmente na diferença que se lhes opõe, são semelhantes e espelho mútuo do ser que partilha este mundo, o nosso mundo, o mundo dos homens e das mulheres.