Na cidade dos Estudantes, todos os anos em abril é altura de mergulhar nos feitos dos antigos academistas, que foram agentes cruciais para o alavancar do 25 de abril de 1974 e na conquista da liberdade.
Contextualização histórica
Para efeitos de compreensão das razões que levaram à Crise Académica de 1969, é essencial estar ciente de alguns dos momentos que a antecederam. Neste sentido, recuemos a 12 de dezembro de 1956, o dia em que o Governo divulgou o decreto-lei 40-900. Esta medida governativa visava a governamentalização e esvaziamento do movimento associativo estudantil, ao colocar as associações de estudantes sujeitas à fiscalização do Ministério da Educação. No entanto, a onda reivindicativa nos três centros estudantis (Coimbra, Porto e Lisboa) foi de tal modo intensa que, pela primeira vez, a Assembleia Nacional revogou um decreto governamental, provando-se assim o poder dos movimentos estudantis.
O ano de 1965 é também de essencial importância, visto que se pautou por um período duro de restrição na Associação Académica de Coimbra (AAC) que passou a ser liderada por uma Comissão Administrativa nomeada pelo Governo. A sua política passava por aniquilar todas as formas de expressão democrática da casa, ao impedir os estudantes de participarem no Senado e na Assembleia da Universidade de Coimbra. Após três anos sob este cenário repressivo, em 1968, através dos esforços do Conselho das Repúblicas, dos Organismos Autónomos e de algumas secções desportivas, foi criada uma comissão que pretendia recuperar o ato eleitoral. Neste sentido, foi realizado um abaixo-assinado que reuniu a assinatura de 2500 estudantes, posteriormente entregue ao Reitor da altura, Andrade Gouveia. A Academia saiu vitoriosa e foi no início de 1969 que ocorreram as eleições, para a qual concorreram duas listas, saído vencedora a liderada por Alberto Martins.
O caminho traçado pela Crise Académica de 1969
O dia 17 de abril de 1969 foi marcado pela inauguração do novo edifício das Matemáticas na Universidade de Coimbra, que contou com a presença do chefe de Estado da altura, Américo Tomás e outros membros do Governo. A Comitiva foi recebida com os gritos de protesto das capas negras, que materializaram as suas palavras em cartazes que espelhavam o seu descontentamento.
Na agora denominada “sala 17 de abril”, entre o público estava o dirigente da Associação Académica de Coimbra e aluno do 3.º ano de Direito, Alberto Martins, e alguns estudantes, visto que a maior parte foi proibida de entrar. Movido pela força de todos os seus colegas que viam a sua voz sufocada pelo fascismo, protagonizou um ato de coragem, materializado em três palavras que mudaram todo o decurso do ensino português. O estudante ergueu-se e interrompeu o então Presidente da República para pedir a palavra em nome de todos os estudantes, para denunciar a falta de liberdade e de democracia na Universidade, para exigir a autonomia universitária e a modernização do ensino superior. Américo Tomás, respondeu ao estudante que era a vez do ministro da Justiça de falar e negou-lhe a palavra. Contudo era demasiado tarde. A reação foi imediata – um aplauso instantâneo e gritos ressoantes de uma Academia desesperada que, pela primeira vez em muitos anos, viu a luz ao fundo do túnel. Já do lado da repressão ouviam-se as vozes dos agentes da PIDE que proferiam as palavras “fora, fora”, porém ensurdecidas pelo espetáculo ruidoso que os estudantes tinham formado. Subitamente, o chefe de Estado deu por encerrada a apresentação, e retirou-se com a comitiva.
Os estudantes irromperam pela sala, e deu-se início à verdadeira inauguração, na qual Alberto Martins deu uso à palavra e discursou para os seus camaradas. No entanto, a esperança durou pouco, visto que o corajoso representante foi preso passado umas horas e interrogado pela noite adentro. A sua detenção resultou num protesto de madrugada, em frente à sede da PIDE, à qual se seguiu uma onda de violência brutal. A cidade de Coimbra, estava então mergulhada nas sombras, resultante do amontoar das forças de segurança do governo. Alberto Martins foi libertado na manhã seguinte e dirigiu-se a uma Assembleia Magna (AM) convocado na sequência do sucedido, e na qual se engendrou o contra-ataque ao regime. Foi a partir deste momento que se iniciou a Crise Académica de 1969.
Poucos dias depois, foram suspensos oito alunos, que eram os principais rostos de protesto, entre os quais o presidente da AAC. De imediato foi convocada uma AM na qual se estabeleceu a greve às aulas, e o começo do Luto Académico. A partir deste instante, o Conselho de Veteranos validou a proibição do uso de insígnias e a suspensão das festas académicas, em solidariedade para com a Academia e por todos os colegas punidos.
A 30 de abril, José Hermano Saraiva, então ministro da Educação, fez uma transmissão televisiva na qual acusou os estudantes de desrespeito e insubordinação face ao governo, e assegurou que seria estabelecida a ordem na cidade. Ao contrário do que as forças fascistas esperavam, a Academia manifestou-se em força e deixou claro o seu repúdio perante as decisões do ministro. A Universidade de Coimbra foi encerrada antecipadamente no dia 6 de maio, decisão esta tomada numa assembleia que teve lugar no Pátio dos Gerais.
A 28 de maio realizou-se mais uma AM na qual estiveram presentes mais de cinco milhares de alunos onde foi aprovada a greve aos exames. Os estudantes estavam de tal forma desesperados que preferiam arriscar-se a perder um ano dos seus estudos, ou na pior dos casos, serem enviados para a Guerra Colonial, a aceitar a situação. Cerca de 85% dos estudantes aderiram ao ato de contestação, demarcando-se como o marco perfeito de solidariedade e união estudantil. Realizaram-se assim a “Operação Balão”, a 3 de junho, e a “Operação Flor, a 14 de junho, nas quais foram distribuídos balões e flores às pessoas da cidade, o que foi a ocasião perfeita para trazer a causa estudantil para a rua e consciencializar os conimbricenses. No meio de toda a violência e sufoco ditatorial, a Academia provou que, mediante meios pacíficos, a sua causa alcançou uma dimensão diferente.
Outro momento essencial e indissociável desta luta foi a final da Taça de Portugal, na qual disputaram Académica e Benfica no Estádio do Jamor. A Briosa entrou no estádio de capa aos ombros, de modo a simbolizar que a equipa, ou melhor, os estudantes, eram um só unidos pela mesma causa. O intervalo foi o apogeu do protesto em que foram exibidos cartazes com palavras que faziam frente à ditadura. Pela primeira vez, um encontro futebolístico não tinha tido tempo de antena, ou sequer contado com o chefe de Estado. O Futebol, que era um dos “Três F”, e um pilar da ditadura usado como um método de distração e pacificação das massas, tinha-se revelado exatamente o contrário – um inimigo do regime.
Após o 25 de abril de 1974, assistiu-se a uma reconstrução gradual e progressiva dos valores, tradições e atividades que tinham sido interrompidas durante estas décadas de silenciamento. O Luto Académico só foi levantado na década de 80, voltando assim a Academia ao seu funcionamento “normal”.
Nos dias de hoje temos a palavra?
A crise académica de 1969 foi a expressão máxima da politização do movimento associativo estudantil, na luta contra o fascismo. Após 55 anos desta sucessão de feitos, e da conquista da liberdade, consequência da Revolução dos Cravos, cabe-nos a nós, Academia do presente, evocar estas memórias para mudar o ensino atualmente. Os direitos estudantis reivindicados foram alcançados? O ensino superior é para todos os alunos? A voz da Academia é ouvida pelas entidades competentes? A democracia foi alcançada? A luta acabou? A censura deixou de existir?
Não há melhor resposta no meu ser que possa apresentar para estas questões que esta: em parte, sim. Presentemente vivemos numa Academia rica em diversidade, espelhadas nos alunos de diferentes nacionalidades, orientações sexuais, crenças religiosas, identidade de género, convicções políticas, entre outros variadíssimos fatores. Contudo, apesar de haver novas oportunidades, é reconhecível que nem todos os membros desta comunidade que é o ensino superior, possuem os mesmos direitos que outros. São inúmeros os casos de estudantes que ficam com um sonho pelo caminho, por terem o infortúnio de crescer num ambiente menos abastado, muitas vezes com um ambiente familiar degradado, onde a prossecução do ensino superior é um luxo secundário e inalcançável. Noutro prisma, a Academia, apesar de ter liberdade para se fazer ouvir, continua a receber meias palavras dos governantes espelhadas na falta de soluções perante os problemas que assolam os estudantes. Dizemos viver numa democracia, mas a censura continua presente nos dias, apesar de não generalizada e manifestada de forma subtil. Vivemos tempos melhores, em que o ensino evoluiu e expandiu-se, contudo, existem várias lutas por enfrentar, algumas não tão distintas dos tempos antigos. Vivemos, de facto, num contexto distinto com novas circunstâncias, contudo as armas da nova luta, continuam a ser a mesmas – a união das vozes estudantis em prol de um direito. A luta da Academia não tem a mesma participação que tinha outrora, talvez pelos jovens do presente não necessitarem desta ação para respirarem livremente. O esforço da luta pela palavra dos nossos antepassados, não se reflete no seu uso, que é insuficiente. O papel da História consiste em ensinar a humanidade sobre o passado para não perpetuar os mesmos erros, mas acredito que neste caso a sua função seja evocar as personalidades que foram o motor deste movimento, como uma fonte de inspiração para os jovens do presente. O que aconteceu neste dia, em 1969, foi a demonstração viva que até mesmo o regime mais temido e repressor apresenta fraquezas que só a luta coletiva é capaz de abalar. A 17 de abril de 2024, a luta continua.