FĂĄtima possui quantidade, qualidade e variedade a nĂvel artĂstico. No entanto, aos olhos de todos, atĂ© dos prĂłprios habitantes, apenas tem um santuĂĄrio.
FĂĄtima foi, atĂ© ao sĂ©culo XIX, apenas uma pequena e pobre freguesia com pouca relevĂąncia no concelho. Hoje, recebe cerca de 6 milhĂ”es de visitantes por ano e Ă© um dos maiores centros de peregrinação religiosa do mundo. Sob o olhar atento do catolicismo, esta cidade foi crescendo em todos os aspetos. Mas serĂĄ que esse desenvolvimento se verificou a nĂvel de produção cultural?
Em qualquer manhĂŁ de um dia 13 de maio, o cenĂĄrio que se observa no centro de FĂĄtima, âcidade da pazâ, Ă© de grande azĂĄfama. Os grupos de peregrinos exaustos, ainda com os coletes amarelo fluorescente vestidos, tentam chegar o mais depressa possĂvel para nĂŁo perder as primeiras comemoraçÔes. Os lojistas, embora atarefados, abordam todo o cliente que possa querer um terço, uma imagem ou um banquinho para assistir Ă missa.
Empregados de mesa servem pequenos-almoços a todo o gĂĄs, para garantir que ninguĂ©m sai do estabelecimento sem comer qualquer coisa antes da celebração. Turistas estrangeiros tentam, confusos, encontrar o melhor local para ouvir o padre, que pregarĂĄ numa lĂngua que desconhecem.
Ă medida que se aproximam as 11h da manhĂŁ, milhares de pessoas dirigem-se ao amplo recinto do SantuĂĄrio de FĂĄtima, que parece diminuir, quando a multidĂŁo torna impossĂvel vislumbrar o chĂŁo asfaltado. Ouve-se o sino e faz-se silĂȘncio, embora interrompido por uma ou outra criança que nĂŁo compreende o que se passa Ă sua volta.
Agora, apenas Ă© percetĂvel o som suave do crepitar das velas, carregadas de promessas, que ardem discretamente na lateral esquerda do espaço. Veem-se umas pessoas emocionadas, outras apĂĄticas. Algumas vivem uma experiĂȘncia Ășnica na vida, outras sĂł mais um dia igual a qualquer domingo. A maioria permanece no recinto, ora distraĂda, ora atenta, durante toda a cerimĂłnia. AtĂ© que os acordes do âAdeus de FĂĄtimaâ anunciam o fim da missa.
De repente, o recinto transforma-se num frenesim de lenços brancos que se agitam em despedida à imagem de Nossa Senhora de Fåtima. Esta, envolta em rosas brancas, move-se ao longo do largo corredor central, sobre oito ombros fortes.
Ă este o cenĂĄrio a que se assiste naquele dia tĂŁo importante para os fiĂ©is, que tĂȘm ao seu dispor inĂșmeros espaços, distribuĂdos pela cidade, onde Ă© possĂvel conhecer melhor a histĂłria de FĂĄtima.
COMO TUDO COMEĂOU
Reza a lenda que, a 13 de maio de 1917, trĂȘs crianças, que pastoreavam na Cova da Iria, FĂĄtima, avistaram a Virgem Maria, em cima de uma azinheira, envolta na âmais brilhanteâ luz branca. A Santa transmitiu uma mensagem de paz e prometeu que voltaria mais cinco vezes no dia 13 de cada mĂȘs.
Apesar do ceticismo de muitos, a palavra foi-se espalhando e, a 13 de outubro de 1917, cerca de 70 mil pessoas deslocaram-se atĂ© Ă Cova da Iria para testemunhar aquela que seria a Ășltima aparição. Os trĂȘs pastorinhos foram os Ășnicos a ver Maria, no entanto muitos dos presentes no local acreditam ter vivido o inesquecĂvel âMilagre do Solâ, descrito como um momento em que o sol apresentou vĂĄrias cores e pareceu tremer.
A partir deste dia, FĂĄtima deixou de ser um local insignificante e passou a despertar o interesse nĂŁo sĂł dos crentes, como tambĂ©m daqueles que queriam experienciar a mĂstica da cidade. De acordo com JosĂ© Poças, autor da obra FĂĄtima dos InĂcios do SĂ©culo XX â A freguesia de FĂĄtima (1900 -1917), o impacto inigualĂĄvel destas visĂ”es resultou do alinhar de dois principais fatores do contexto histĂłrico da Ă©poca.
Por um lado, a repercussĂŁo a nĂvel nacional deveu-se ao facto de esta histĂłria pĂŽr em causa o radicalismo republicano, caracterĂstico da Primeira RepĂșblica. Por outro lado, vivia-se, a nĂvel internacional, a Primeira Guerra Mundial, que conferiu uma relevĂąncia singular Ă mensagem de paz que os pequenos pastores afirmaram ter ouvido de Maria.
ApĂłs o sucedido, FĂĄtima estava perante um crescimento para o qual nĂŁo se encontrava preparada. âO urbanismo foi caĂłtico durante os primeiros temposâ, explica o historiador. Acrescenta tambĂ©m que âsĂł durante o Estado Novo foi feita uma planificação, que permitiu um desenvolvimento mais ou menos corretoâ.
O autor lembra que se trata de uma cidade muito recente, com apenas 25 anos, e que, apesar de jĂĄ ter havido desenvolvimentos na urbanização, ainda hĂĄ âum sentido muito apurado de continuar a melhorarâ. Criada devido Ă sua função religiosa, a cidade de FĂĄtima ainda estĂĄ profundamente ligada ao catolicismo, sendo considerada, por muitos, o âAltar do Mundoâ. Esta ligação leva a que, mesmo 106 anos depois das chamadas apariçÔes marianas, a religiĂŁo domine a produção artĂstica no local.
Observada pela lente dos turistas, a âcidade da pazâ pode parecer um centro cultural dinĂąmico e movimentado, em que se aposta na valorização da arte, com exposiçÔes para visitar, espetĂĄculos para assistir e obras para admirar. Mas do ponto de vista dos artistas locais, a cidade nĂŁo corresponde exatamente a estas caracterĂsticas.
COMO SER ARTISTA EM FĂTIMA
Martinho Costa Ă© um artista, nascido e criado numa pequena aldeia da freguesia de FĂĄtima. ApĂłs terminar a licenciatura em Artes-PlĂĄsticas – Pintura, pela Faculdade de Belas-Artes de Lisboa, permaneceu 22 anos na capital portuguesa a trabalhar. Abandonou a grande cidade e voltou para FĂĄtima, por estar âfarto da confusĂŁoâ e por acreditar que âse pode ser artista em qualquer sĂtioâ.
Considera que o regresso Ă aldeia onde cresceu sĂł foi possĂvel devido Ă tecnologia, que permite fazer circular o trabalho para qualquer ponto do paĂs. O pintor esclarece: âantes os artistas tinham de sair, porque nĂŁo tinham aqui nada. Agora, a situação continua igual, mas Ă© possĂvel mandar o trabalho para foraâ.
Martinho Costa considera que, a nĂvel artĂstico, âtudo o que se faz em FĂĄtima Ă© muito dominado pela religiĂŁoâ. Esta opiniĂŁo e o facto de nĂŁo ser crente levam a que rejeite as poucas propostas de trabalho que recebe: âaceitar um trabalho puramente religioso Ă© estar ligado a uma mensagem que nĂŁo me interessaâ.
A Vortice Dance Company (VDC) Ă© uma companhia de dança sediada em FĂĄtima, com trabalho apresentado em 33 paĂses. Os fundadores e coreĂłgrafos, ClĂĄudia Martins e Rafael Carriço, jĂĄ foram reconhecidos com alguns prĂ©mios internacionais de prestĂgio, tais como o UNESCO Grand Prix of Choreography, entregue em 2001 pela Presidente da RepĂșblica da FinlĂąndia, em HelsĂnquia.
Tal como Martinho Costa, ClĂĄudia Martins tambĂ©m tem a sua base de criação em FĂĄtima, mas trabalha sobretudo para fora, algo que considera possĂvel graças Ă s âferramentas de comunicação que agilizam os processosâ. Apesar de ser a partir de FĂĄtima que esboça e direciona os seus projetos, a coreĂłgrafa realça que âingressar no meio de trabalho em cidades pequenas Ă© quase uma utopiaâ.
Para ClĂĄudia Martins, licenciada pela Escola Superior de Dança de Lisboa, âo produto artĂstico nĂŁo se esgota no seu local de apresentaçãoâ. Ă comum ver os fatimenses deslocar-se aos teatros mais prĂłximos para assistir Ă s produçÔes da VDC, jĂĄ que, muitas vezes, âo âproduto finalâ nĂŁo tem agendada uma apresentaçãoâ na sua cidade.
VALORIZAĂĂO DOS ARTISTAS
Os artistas consideram que não lhes é dado o apoio devido, especialmente se a sua arte não estiver relacionada com a história das apariçÔes de 1917.
Martinho Costa quer distanciar-se do âmagnetismo da religiĂŁoâ, o que o faz recusar as poucas propostas de trabalho que lhe sĂŁo apresentadas em FĂĄtima. A Ășnica obra que tem exposta na cidade Ă© um mural que, apesar de ter sido pedido no Ăąmbito do CentenĂĄrio das ApariçÔes, tem como foco o povo fatimense. O pintor revela que sĂł aceitou a ideia da Junta de Freguesia, porque âa abordagem nĂŁo era exclusivamente o CentenĂĄrio, mas sim as pessoasâ, tema que lhe agradou. Por sua vez, ClĂĄudia Martins confessou, entre risos, jĂĄ ter tentado dinamizar projetos na cidade que nĂŁo foram aceites, algo que considera depender da âvisĂŁo e abertura da pessoa a quem sĂŁo apresentadosâ.
Quanto a este tĂłpico, o presidente da Assembleia da Junta de Freguesia de FĂĄtima, JosĂ© Poças, nĂŁo tem dĂșvidas em afirmar que âa arte estĂĄ a ser tremendamente valorizada em FĂĄtimaâ. No entanto, considera que os habitantes nĂŁo tĂȘm noção da quantidade e variedade de produção artĂstica que existe na cidade, algo que se deve Ă falta de infraestruturas. Neste sentido, JosĂ© Poças sublinha que âhĂĄ arte e artistas em quantidade, mas nĂŁo hĂĄ espaços prĂłprios para divulgar ao resto dos fatimenses aquilo que se faz em FĂĄtimaâ. Visto isto, o representante da Junta de Freguesia defende que, alĂ©m do SantuĂĄrio, deve ser criado um âum centro, com todas as valĂȘncias, para que se possa divulgar cultura,â.
Na opiniĂŁo de ClĂĄudia Martins, âinstitucionalmente, a VDC nunca foi valorizada como deveria e como Ă© fora de portasâ. PorĂ©m, o presidente da Assembleia da Junta de Freguesia esclarece que âFĂĄtima dĂĄ o devido valor, sĂł que nĂŁo tem dinheiro suficiente para fazer esse tipo de espetĂĄculosâ. JosĂ© Poças lembra que FĂĄtima Ă© uma âsimples freguesiaâ e, por isso, nĂŁo tem o orçamento, que, por exemplo, um concelho tem, para dinamizar eventos culturais.
UMA CIDADE ATĂPICA
Martinho Costa sĂł se apercebeu, ao viver em Lisboa, de que vinha de âum sĂtio um bocadinho peculiarâ. JĂĄ ClĂĄudia Martins refere-se a FĂĄtima como uma âcidade com caracterĂsticas diferentes da maioriaâ. JosĂ© Poças destaca que a organização urbanĂstica Ă© o que mais a distingue: âquando nĂłs pensamos numa cidade qualquer, o espaço central Ă© um espaço civil, quando nĂłs pensamos em FĂĄtima, esse espaço Ă© o SantuĂĄrioâ.
Ă unĂąnime que FĂĄtima Ă© uma cidade distinta de todas as outras. Quem viveu toda a vida no âAltar do Mundoâ nĂŁo tem conhecimento de que ainda hĂĄ muita cultura local por explorar. Ainda assim, os principais espaços culturais existentes continuam a enaltecer uma histĂłria que os habitantes jĂĄ sabem de cor, e nĂŁo a arte que Ă© produzida, diariamente, ali mesmo.



