Num primeiro momento, o termo “descolonizar” causou-me estranheza. Conhecia o termo decolonialidade, ouvido entre rodas de conversa e lido em textos acadêmicos de colegas e amigas que estudam o conceito. E depois, ao reler com atenção o texto de partida do questionamento, percebi que o termo se refere ao processo histórico de libertação política e econômica das então ainda colônias africanas. Os termos são parecidos e não só na escrita. Ambos partem do processo histórico da colonização, processo em que houve dominação político-econômica por parte dos países europeus em países “além-mar”, ou seja, fora do continente europeu, mundo conhecido pelos colonizadores.
Como estamos falando a partir de uma perspectiva dos países da língua portuguesa, referimos mais especificamente Portugal com as suas colônias: Brasil, Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo-Verde, São Tomé e Príncipe, Goa, Diu, Damão, Macau e Timor-Leste. De acordo com Trajano (2024), o termo descolonização foi primeiramente utilizado há cerca de 200 anos, em 1836 por um escritor francês contra a ocupação francesa em Argel. No texto, o autor manifestava seu protesto e resistência intelectual contra a dominação de outros povos “além-fronteiras”. Pensando nisso enquanto estudo para escrever esse texto, percebo que o Brasil iniciou seu processo de descolonização antes de tal designação ter sido usada pela primeira vez. E uso o verbo iniciar, porque penso que o Brasil ainda está nesse processo.
Aprofundando um pouco mais o estudo dos dois termos, encontro que o termo descolonização foi modificado primeiramente por Catherine Walsh, pesquisadora equatoriana. Ela explica que o prefixo “des” remete à reversão de algo. Assim, o termo descolonização poderia remeter ao desmontar da colonização, como se isso fosse possível. E ela então propõe o uso do termo “decolonialidade”, que parte do processo de aceitação da nossa herança colonial, pois não podemos modificar a história (Walsh, 2013). Assim, a reflexão trazida de aceitar o que ocorreu historicamente no processo de colonização é interessante, seja para os países que precisam lidar com a sua herança de colonizados, seja para Portugal, que precisa lidar com a sua herança de colonizadores.
Pensando um pouco mais sobre a proposta do texto, a partir do mote de que a descolonização política não foi acompanhada pela descolonização mental, paro para entender esses dois termos e conceitos. A descolonização política refere-se à libertação política das últimas colônias. A descolonização mental seria a aceitação dessa libertação política, ou seja, aceitar que aquele território, antes dominado pelos portugueses, já não é Portugal, embora tenha traços de Portugal. E nessa aceitação, entramos no termo proposto pela pesquisadora equatoriana (portanto, de uma ex-colônia espanhola) – decolonialidade ou, adaptando, “decoloniar”, evitando o sufixo “izar” e usando o sufixo “iar”, propondo não um desmonte e uma reversão da colonização, porque isso já não é possível, mas criando histórias.
Uma das características dos estudos decoloniais, envolve dar a voz aos descendentes dos povos originários e “ex-colonizados”. Partindo dessas reflexões, podemos chegar ao questionamento inicial: O que significa descolonizar hoje? Talvez possa significar aceitar um passado e uma herança colonial e que possibilita hoje, com o fenómeno da migração, o encontro de diferentes povos, mas com traços semelhantes. O encontro de uma só língua, mas com sotaques diversos. O encontro do uso de temperos, mas com diferentes formas de usá-los. E aceitar, significa dar a mesma importância, não atribuindo graus a partir de um só olhar. Aceitar significa integrar.
Afinal, não somos mais os mesmos. Os portugueses que hoje vivem não são os mesmos colonizadores, são seus descendentes. Os brasileiros, angolanos e moçambicanos que hoje vivem não são os mesmos colonizados. São seus descendentes. E para refletir sobre isso, utilizo-me de uma reflexão da psicologia. Se nós não falamos sobre nossa história para entendermos a origem de alguns comportamentos ou alguns acontecimentos na nossa vida, nós temos a tendência de repeti-los, mesmo que inconscientemente. Já cantou Belchior, cantor de música popular brasileira: “ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais”. Na clínica de psicologia, convidamos as pessoas a refletir sobre esses comportamentos que não entendemos e que apenas repetimos. Mas será que temos verdadeiramente de ser os mesmos e viver como nossos pais? E a partir dessa reflexão, podemos ver mudanças, dessa vez, conscientes, porque falamos, choramos, lembramos, refletimos e só então, começamos a mudar. A partir disso, podemos pensar: ainda somos os mesmos colonizados e colonizadores? Se ainda temos comportamentos “dos nossos pais” e já não queremos ser, talvez, se continuarmos a falar sobre isso, a lembrar disso, a chorar por conta disso, e a refletir sobre isso, podemos começar a mudar.
Referências Bibliográficas
Trajano, Wilson (2024) Sobre a descolonização e seus correlatos. Anuário Antropológico, V. 49, nº 1 pp 15-65
Walsh, Catherine (2013), PEDAGOGÍAS DECOLONIALES Prácticas insurgentes de resistir, (re)existir y (re)vivir – TOMO I – Serie Pensamiento decolonial – Quito – Ecuador – Ediciones Abya-Yala