O regime salazarista, que teve fim no 25 de abril de 1974, influenciou as mais diversas áreas do país e o ensino não foi exceção.
Desde 1933 até meados da década de 70, altura em que se deu a Revolução dos Cravos, Portugal sobrevivia ao fim da ditadura militar e ao início de uma “ditadura constitucionalizada”, protagonizada por António de Oliveira Salazar.
O Estado Novo caracterizou-se pela sua ideologia forte e restrita, com uma censura que punha em causa a liberdade de expressão e de pensamento, onde “Deus, Pátria e Família” se apresentou os três pilares fundamentais.
João e Vera Coutinho, um casal de professores primários que experienciaram a transição do regime de ditadura salazarista para a democracia, confessaram, aos jornalistas do Espelho, as maiores diferenças que encontraram com a alteração de regime.
Ao passo que João lecionava no Porto e, depois da tropa, em Gaia, Vera iniciou a sua carreira em Castelo de Paiva e só depois foi desvalorizada para Gaia, algo que denotou os desequilíbrios seleccionados entre as cidades interiores e as mais centralizadas.
O Plano dos Centenários e as características dos edifícios
Segundo o professor, o Plano dos Centenários era o modelo padrão da maioria dos edifícios escolares, cujo objetivo seria organizar e instalar todos os edifícios do ensino primário necessários à instrução do povo português, garantindo que todas as crianças pudessem estudar na sua área de residência.
“Ter o lado masculino e o feminino, 100% separados por sexos. Inclusive havia um muro no recreio para separar os dois sexos. Claro que pude falar de um lado para o outro, porque o muro não era tão alto quanto isso, mas não fez misturas”, confessou João.
No entanto, nas áreas rurais e aldeias menores, devido ao inferior número de crianças, a segregação de alunos por sexos não acontecia, levando Vera a dar aulas a todos os alunos da classe, até porque, em Castelo de Paiva, existia apenas uma sala.
“Os edifícios também não tinham aquecimento. Era a lareira ou o fogão a lenha, onde a professora ia, com os alunos, buscar a lenha ao mato, como foi no meu caso”, declarou o docente.
João referiu, ainda, que as escolas não tinham cantinas, os apoios sociais eram escassos (quando existiam) e, embora existissem verbas destinadas à limpeza, essa responsabilidade recai sobre os professores, especialmente nas regiões mais remotas.
Ser professor durante o Estado Novo
Para um professor ser autorizado a exercer a profissão teria de completar o 5º ano de escolaridade (atual 9º ano) e fazer um Curso do Ministério da Educação de dois anos (posteriormente aplicado bacharelado), que incluía o estágio numa escola.
“Normalmente, um professor tinha mais do que uma aula. Por vezes, tinha quatro aulas, o que era bastante complicado ter uns a trabalhar, estar a falar com outros e ser chamado à atenção daqueles que tinham dúvidas. Só nos grandes meios, em que fizemos mais crianças, é que conseguimos ter apenas uma turma de uma aula. Eu nunca tive quatro aulas, quanto muito tive duas”, desabafou o docente.
Para combater a falta de educadores, em particular no interior do país, o Estado contratava regentes escolares que, apesar de não possuírem o diploma de professor, eram aptos a lecionar, recebendo regras inferiores aos dos docentes oficiais.
Em complemento à divisão por sexos, os professores só podiam lecionar para alunos do mesmo sexo, no entanto, devido à predominância de docentes do sexo feminino, por vezes, as mulheres davam aulas aos rapazes.
João Coutinho
“Eram tão poucos os professores a concurso que nós [professores do sexo masculino] tínhamos lugar onde quiséssemos. A primeira escola que eu peguei na lista era sempre aquela que me calhava. Uma concorrente feminina que teve o dobro da minha nota não tinha a vaga; eu tinha prioridade porque aquele lugar era masculino”
A lei conjugal era, também, uma regalia da qual um casal de professores poderia usufruir.
“Quando uma professora casava com um professor, quando concorressem, podiam ir para uma escola perto dele e tinham prioridade. Eu, no primeiro ano depois de casada, fiquei na mesma escola que ele. No segundo ano, fiquei numa escola perto da dele e, quando concorri a efetiva, concorri para Leirós porque ele estava em Seixezelo e aquela era a escola mais perto da dele. Se eram os dois funcionários do Estado e estavam os dois na mesma profissão, fazia sentido estarem juntos”, explicou Vera.
O ensino português em tempo de ditadura
“Antes do 25 de abril de 1974, os professores tinham que fazer, em junho, o recenseamento no registo civil para haver um controlo da presença dos alunos nas aulas. Claro que isso era treta porque eles iam faltando aqui e ali e nunca se sabia deles. Não havia o registo de mobilidade dos pais, o que não facilitava o controlo”, declarou o profissional da educação.
No dia 7 de outubro iniciava-se um novo ano letivo, nas escolas primárias surgiam novas caras, já recenseadas e com vontade de aprender.
“Os alunos não tinham a pré-escola; entravam diretamente na 1ª classe. Vinham quase sem vocabulário nenhum, mal sabiam pronunciar as palavras, ainda por cima iam para a escola na altura em que caíam os dentes, o que era terrível. Entravam com sete anos”, revelou o entrevistado.
A escolaridade era obrigatória até à 4ª classe (atual 4º ano) e os alunos teriam, no máximo, 14 anos, contudo, isso “só acontecia quando os alunos ‘menos capazes’ andavam na escola desde os sete anos sem aproveitamento quase nenhum”, esclareceu João.
“Alguns alunos eram passados, na 4ª classe, para ter um diplomazinho para alguma finalidade, como para ter uma carta de condução. Só se podia ter carta de condução se tivessem a 4ª classe”, acrescentou.
As dificuldades na aprendizagem, por não haver a pré-escola, representaram um verdadeiro desafio para os profissionais da educação, que tanto se esforçaram para manter firme a arte de educar.
“Primeiro, eram dois anos quase para os ensinar a ler, saber a numeração e as técnicas de operações… as coisas mais básicas. E, depois, eram dois anos para fazer deles alunos de 4ª classe e poderem sair. Até porque tinham de fazer exames fora da escola”, desabafou o professor.
Como se pode constatar através do gráfico, a taxa de analfabetismo, na década de 60, era de quase 35%, mas tem tido, desde a Revolução dos Cravos, uma caída acentuada.
João Coutinho
“Nós também éramos responsáveis por ajudar na higiene pessoal dos alunos. Há 50 anos, as casas não tinham casas de banho, muito menos casas de banho com água quente. Portanto, os banhos e higiene pessoal era lavar os olhos e ir para a escola (isto quando lavavam). Quando havia uma gripe que não eram tratados, as doenças tratavam-se por si. Era a tal imunidade que se ia adquirindo”
Os meios mais difíceis para educar as crianças também foram um assunto discutido com os dois professores, pelo que João confessou que nunca tinha castigado um aluno que não informasse alguma coisa, mas sim por não deixarem trabalhar quem queria aprender.
Os alunos adquiriram, na escola, conhecimentos das áreas do português, da matemática, da história e da geografia e ao sábado, os professores eram responsáveis por dar a catequese, (“a doutrina”), para além da mocidade portuguesa e do hino e, apesar dos trabalhos manuais serem escassos (porque o verdadeiro trabalho manual era ajudar os pais no campo), Vera confessou ter ensinado os seus alunos a fazer renda.
“Os livros eram livros únicos, do Estado. Era oficial”, concluiu a professora.