Por causa do seu trabalho como construtor civil, José Carlos tem viajado ao redor do mundo durante quase toda a sua carreira. Até ao momento, visitou vários países, apreciou diversas culturas e observou as mais variadas e chocantes situações. Mas, no final de contas, o que ser emigrante lhe ensinou, favoreceu ou prejudicou?
Desde os 17 anos que Carlos – como é mais conhecido – desempenha a mesma profissão: carpinteiro de cofragem. Durante toda a sua vida tem-se dedicado à área da construção civil, na qual exerce o cargo de encarregado da obra que supervisiona. Contudo, o caminho para chegar até esse ponto nem sempre foi fácil. “Tive que lutar muito até chegar a este posto” confidencia Carlos, afirmando que, no início, “o grau de dificuldade era bastante elevado e não tinha nem experiência nem conhecimento.”
Porém, 25 anos depois, é já um trabalhador com bastante experiência e que assume o papel de professor para vários jovens. Mas, ao fim de quase três décadas, nem tudo o que tem para ensinar se trata apenas sobre técnicas de construção e materiais.
O início da sua vida de emigrante começou em 2000 quando viajou para Espanha, mais especificamente para o País Basco, uma comunidade autónoma espanhola. “A cultura e a mentalidade das pessoas são idênticas às nossas e facilitaram-nos mais o trabalho” realça Carlos. Apesar de cada país ter a sua “maneira de trabalhar”, acredita que a rápida adaptação a Espanha também se deveu ao facto de ser o país vizinho de Portugal.
Algum tempo depois, foi transferido para a Noruega para construir uma ponte na capital, em Oslo, onde permaneceu por um ano. Relata que é um país “com muita neve e muito frio, mas que é bastante desenvolvido”. No entanto, salienta que, apesar das pessoas terem sido acolhedoras e simpáticas, não possuíam a mesma ética de trabalho a que ele o os companheiros estavam ambientados, ou seja, enquanto que eles estavam “acostumados a trabalhar até que o trabalho acabe”, já para os trabalhadores nativos do país o costume era seguir um horário. “Com o tempo fomo-nos habituando e trabalhando à maneira deles”, acaba por dizer.
Ainda na Noruega, vislumbrou e vivenciou uma experiência inédita: sol ou noite ininterruptos por semanas. Este fenómeno explica-se devido ao eixo de inclinação da Terra, fazendo com que entre novembro e dezembro, uma região do país mergulhe na escuridão total. E o contrário acontece entre os meses de maio e julho, em que os cidadãos noruegueses têm de viver sob a luz do dia durante dezenas de dias. “Foi engraçado, porque foi uma coisa que nós nunca tínhamos visto. Foi uma experiência que fica bonita como recordação para toda a vida”, refere. Quando questionado se foi uma adaptação difícil, negou, respondendo que “as pessoas de lá já nos tinham avisado e então já estávamos a contar”.
De Espanha até à Noruega, a sua permanência na Europa ainda estava longe de acabar. Deslocou-se para França, mas desta vez com a companhia da família. Descreve que a adaptação foi muito complicada, pois “foi um país que a nível de língua, comunicação e trabalho não correu muito bem”. Explica que “era uma língua muito distinta assim como a maneira deles de trabalhar”, além de não haver companheirismo, principalmente entre os emigrantes portugueses: “Estavam lá muitos portugueses e por estarem lá há muitos anos, julgavam-se mais daqueles que iam por último. Pensavam que íamos para lá para lhes roubar o trabalho. Não havia solidariedade”.
Apesar da família ter emigrado também, o construtor civil declara que, embora tenha gostado da sua presença, “não facilitou na adaptação ao trabalho, porque não havia ajudas”.
Após a estadia em três países europeus, emigrou para Gâmbia, na África, e foi neste continente que experienciou uma realidade bastante diferente e deveras mais impactante do que “aquela a que os portugueses estão familiarizados”.
Carlos começa por expor que ele e os colegas viajaram milhares de quilómetros para construir uma ponte que interligasse Gâmbia e Senegal. Quanto aos trabalhadores locais, afirma que “eram pessoas bastante trabalhadoras e bastante humildes, fazendo de tudo para ganharem um bocadinho de dinheiro”.
O continente africano é conhecido pela sua dominante pobreza e falta de condições de vida. Durante os diversos meses que permaneceu lá, viu e sentiu essa realidade. “É um país de muita pobreza. 95% da população passa fome. Da pouca comida que tinham, ainda a dividiam. Se a comida era para uma ou duas pessoas, faziam com que desse para sete ou oito. E quando passávamos por eles, mesmo com pouco para comer, ainda nos ofereciam”. Carlos refere ainda que tentou ajudar o máximo possível, pagando-lhes o almoço, já que “quem trabalha tem que manter financeiramente a família inteira, e isso torna-se muito difícil”.
Para construírem a ponte da qual estavam encarregues, tinham de se deslocar diariamente para o local de trabalho através de um ferry. Foram nestas deslocações que tiveram palco duas das mais difíceis situações que Carlos suportou. A primeira foi outra demonstração do nível de pobreza cada vez mais visível no país: “As pessoas lá passavam quase uma semana à espera da vez delas para passarem no ferry. E eu vi, uma altura, uma mãe com dois filhos. Ela tinha uma garrafa de água de um litro e meio. Conseguiu dar banho aos dois filhos e ainda lhe sobrou meia garrafa de água. Aí já temos uma pequena noção do tanto de pobreza que eles passam”.
A segunda situação, efetivamente mais intensa e traumática, aconteceu quando um trabalhador nativo caiu para fora do barco. “Esse rio tinha muitos crocodilos. Infelizmente, ele foi apanhado por um e nunca mais o vimos. Tivemos de ir trabalhar na mesma. Lá não é como na Europa. As pessoas morrem todos os dias. Ficámos com um pressentimento, mas não podíamos fazer nada”, expressa. “Tivemos de seguir em frente”.
Todavia, Carlos relata que na mesma medida que a pobreza só parecia crescer, também a corrupção aumentava cada vez mais. “Para passarmos a fronteira entre Gâmbia e Senegal, tínhamos de suborná-los” conta, referindo-se aos guardas, “eles sabiam que éramos europeus e que, por isso, tínhamos dinheiro”.
Mas nem todas as recordações desta viagem são negativas, pois realça a bondade, a amizade e a determinação das pessoas africanas. “Desde o primeiro dia que nunca nos abandonaram” conta. “Tinha lá um trabalhador que andou sempre comigo e que me ficou na memória, porque tudo o que lhe pedisse, quer fosse de trabalho ou não, estava praticamente 24h por dia disposto a ajudar-me”. Termina afirmando que, de todos os países em que trabalhou, Gâmbia foi o que mais gostou e no qual mais se sentiu acolhido.
Por último, deslocou-se para as Filipinas em 2019, onde foi destacado para construir uma ponte em Cebu. No entanto, menciona que não é um país para o qual voltaria. “Estar em Cebu deixou-me bastante inseguro. Porque lá a segurança é qualquer um que a faz. A justiça é qualquer um que a faz”, explica. “No nosso local de trabalho, estávamos a 30 metros do chão, e, certa vez, chegou lá uma pessoa e começou a disparar com uma arma. Tivemos que fugir. Nesse dia achei que fosse morrer, mas no dia seguinte voltei a trabalhar. Tive que superar”.
Atualmente, Carlos trabalha em Espanha, após a pandemia o obrigar a regressar. Quanto às memórias, refere que “muitas pessoas ficaram guardadas” e “é sempre bom recordar”. Relembra Melvin, um filipino com o qual até hoje mantém contacto através do Facebook.
Apesar de ter retornado ao primeiro país para onde emigrou, não descarta a possibilidade de se deslocar novamente. “Gostava de ir a Inglaterra porque a maneira lá de construção civil, de obras públicas, de pontes e assim, é muito parecida com a nossa e adoraria viver essa experiência”.
A emigração não é o único fator permanente na vida de um construtor civil. O perigo é também uma constante. Carlos recorda, cautelosamente, os acidentes que já teve enquanto trabalhava: “Em 2004, em Madrid, duas chapas apertaram-me o dedo e cortaram-no. Fiquei sem a ponta dele. O segundo acidente aconteceu em Santiago de Compostela, por volta de 2010, em que caí de uma altura de 76 metros e tive de levar 25 pontos na cabeça”. Para algumas pessoas, correr este risco todos os dias pode ser demais, mas para o carpinteiro o medo não representa um obstáculo: “Levas esses sustos, mas segues em frente. Não podemos pensar no medo. Podemos morrer a qualquer hora, e quando chegar a nossa vez, chegará”.
Com a distância da família, o construtor civil acabou por ter estado ausente durante diversos anos. “Sei perfeitamente que perdi muita coisa”, murmura Carlos, com a voz serena e segura. “Tentei sempre ao máximo possível estar presente, mas a vida como está não é fácil e temos de buscar o nosso melhor, seja por onde der.” Termina com a seguinte frase: “Há um sentimento, mas não de arrependimento, porque tentei sempre dar o bom para a família”.
José Carlos deixou a escola relativamente cedo, contudo nunca lamentou já que “seguir os estudos nunca foi uma opção” e “ser construtor civil foi sempre um sonho”. Afirma, com orgulho, que “faça chuva, faça sol ou faça neve”, é uma profissão que tem “bastante orgulho de exercer”. No entanto, refere que se tivesse de escolher outra profissão, seria a de trolha, pois aproxima-se um pouco da sua área atual.
“Quanto à obra que tenho mais orgulho, acho que é a ponte que fizemos nas Filipinas” conta, “estava a cerca de 150 metros do mar e foi a maior estrutura que já fiz até aos dias de hoje. Sinto-me bastante orgulhoso por essa obra”.
Carlos ressalta que apesar de desempenhar um trabalho bastante importante, crê que “não seja valorizado pelo povo português”, mas que depois da tarefa ser concluída, valoriza-se a si próprio e aos colegas pelo desempenho.
Porém, no que diz respeito a conselhos para os mais jovens, se assim pretenderem optar pela área da construção civil, declara que “é uma profissão na qual as pessoas se deveriam sentir gratas pelo trabalho que fazemos e pelo risco que corremos” e “que se devia apostar mais nos jovens, pois estamos a perder cada vez mais construções pela falta de trabalhadores”.
Por fim, após uma visita pelas imensas memórias que guarda, proclama, convictamente, que a vida de emigrante o mudou enquanto pessoa, devido “às várias culturas, às várias pessoas e aos vários sacrifícios”. E acaba por declarar: “Sempre foi este trabalho e sempre o será. Espero desempenhá-lo até à reforma”.