Vinte e cinco de agosto de 1975, o barulho das turbinas das hélices do avião, no aeroporto de Luanda, era ensurdecedor. A cada passo que dava, Guilhermina sentia-se a entrar num caminho sem retorno e num futuro sem sonhos. Na mão direita agarrava com força a mãozinha do primogénito, Hernâni. Ao peito trazia a bebé ainda de colo, Antonela. Ao seu lado, acompanhava-a o marido, apenas esse retornado à pátria. Colada a si vinha a sua querida mãe, pois era incapaz de a deixar ali, na guerra que acordou Angola.
Guilhermina dos Santos nasceu a oito de setembro de 1949, no Lubango, uma cidade do sul de Angola, cujas paisagens “fazem sempre perder o olhar”. Era a filha mais nova de seis irmãos, “a menina dos mimos”, como recorda. Os seus pais eram grandes empresários na cidade, “criavam gado e eram donos de uma pensão que acolhia imensos portugueses, nomeadamente os que chegavam para a caça dos elefantes.”, relata ressaltando que “eram tempos cruéis para animais tão extraordinários” .
A sua vida era rodeada de pessoas, de criados, amas, freiras, turistas e amigos. A infância e adolescência foi de um carinho enorme. “Angola era um país riquíssimo, tínhamos muita fartura, alegria e liberdade”, como se lembra Guilhermina com um tanto de nostalgia. Casou com 18 anos, a 4 de novembro de 1967, “os tempos eram outros”. O namoro era uma brincadeira séria e romântica, em que “os pretendentes se punham a olhar para as janelas e a deixar cartas no correio”, revive com palavras Guilhermina.
Foi um português, “um transmontano de gema”, que lhe pediu a mão. “Ele tinha vindo para Angola em trabalho, mas acabou por se apaixonar”, conta com um riso tímido.
O início do casamento correra sem preocupações. Foi mãe de um menino e, pouco tempo depois, de uma menina cujo nome se inspirou numa das “atrizes italianas mais bonitas da altura, Antonella Lualdi”, diz com vaidade.
A Revolução trouxe liberdade (e guerra)
Em Portugal, A revolução de abril de 1974 derrubou o regime ditatorial do Estado Novo. Mas esse derrubar de regime abriu o caminho para a independência das chamadas províncias ultramarinas, o que incluía, inevitavelmente, Angola.
Os três movimentos de libertação angolanos, Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), União Nacional para Independência Total de Angola (UNITA) e, por fim, a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) estabeleceram um governo provisório que acabou por se desintegrar e culminar numa longa e sangrenta Guerra Civil.
“De um dia para o outro, Angola entrou em guerra com os movimentos de libertação”. Enquanto o conflito se concentrava na capital, Luanda, Guilhermina lembra-se de ouvir as notícias na rádio e “apesar de ainda estar longe”, sentiu “a guerra a aproximar-se”. Nesse momento, teve a proposta do marido de regressarem juntos para Portugal e, talvez, quando tudo acalmasse poderiam regressar. No fundo, “tinha esperança que poderia voltar” à sua terra do coração.
Eram três partidos de libertação a lutar entre si e “a querer, de certa forma, que os portugueses se fossem embora de Angola, e o meu marido era português.”. Com duas crianças tão pequeninas, Guilhermina assume que teve de “ter muita calma e muita sabedoria.”.
Entretanto, “na semana que estava a fazer as malas, surgiu a revolução também no sul de Angola”.
Remonta a julho de 1975 como o “episódio mais dramático” que viveu. Estava dentro de casa com os seus filhos pequeninos quando, subitamente, “dois partidos se envolveram num tiroteio muito grande”. O barulho era aterrorizante, “estava tudo em alvoroço e o sossego não existia mais”. “Tive de ser a coluna da família”, reforça Guilhermina com o rosto sereno e o olhar penetrante. “O meu marido estava num profundo stresse”, acrescenta. Passaram dois dias e duas noites “debaixo de bombardeamentos”. Lembra-se vividamente que escondia o filho mais velho, com três anos e meio, debaixo da cama e a menina, que tinha dois anos, segurava-a no seu colo. Passados dois dias desse cenário tão aterrador de conflito, tinham as passagens para Portugal, “não havia outro caminho possível para a vida”.
A História contabilizou 40 mil mortos, cerca de 400 mil deixaram o país.
O bater de um coração português
Quando chegou a Portugal, foi viver para o Norte, para a aldeia do seu marido. Os seus sogros “tiveram a generosidade” de receber a família toda. Todavia, “foi uma diferença como da noite para o dia”, ilustra vividamente Guilhermina . Viver em Trás-os-Montes implicou a adaptação a uma cultura muito diferente, obrigando a ainda jovem refugiada a “pôr filtros nas conversas porque as pessoas não entendiam”.
Guilhermina, no mês gélido de fevereiro de 1977, entrou para a Função Pública e começou a trabalhar. Já era mãe do terceiro filho, Renato, “era oficial, tinha um filho português”. “Comecei a trabalhar e a ser mais independente, por isso as coisas entraram numa estabilidade boa”, garante. O amor e a educação não faltaram dentro de casa, “embora as saudades de Angola estivessem sempre presentes.”.
“Deixei todos os meus bens no Lubango, abdiquei da casa, dos criados, do conforto, mas nunca abdiquei daquilo que sou nem das pessoas que amo”, afirma com grande confiança e emoção.
Viveu sete anos em Trás-os-Montes, mas pediu a transferência para Coimbra assim que lhe foi possível. A pensar no futuro dos seus filhos, Guilhermina arranjou casa na cidade e foi em Coimbra que começou a “reconstruir o futuro”.
Fora mais uma mudança difícil, as pessoas da cidade também trazem os seus desafios, especialmente para “quem vem de fora”.
Em 1984, Guilhermina tornou-se auxiliar de ação educativa na Escola Básica Silva Gaio. “As professoras admiravam-se por eu usar batom vermelho, mas era a minha imagem de marca, digamos, eu adorava!”, conta orgulhosamente. Foram anos de trabalho árduo, mas Guilhermina fora uma mulher que nunca parou de lutar, sobretudo pelos seus filhos. “A minha mãe foi como uma âncora na minha vida, partilhava com ela as saudades de casa e ela foi sempre a avó que os meus filhos precisaram”, reconhece comovida.
Passaram-se 32 anos até que voltou a respirar o ar do Lubango. “Não ponho em causa a liberdade que o 25 de abril trouxe a Portugal, mas na minha história essa liberdade acabou por me tirar Angola e isso foi muito doloroso”, admite Guilhermina. Mais do que isso, o medo foi traumático, principalmente o “medo de perder a vida e de deixar de criar e educar os filhos”.
Apesar de ter regressado a Angola, parte do coração de Guilhermina já pertence a Coimbra, principalmente porque “a família aumentou muito”. Viu os filhos crescerem e casarem. Em 2001, perdeu a mãe. “Cuidei da minha mãe até ao seu último suspiro, mas às vezes dou por mim a pensar que perder uma mãe é perder o mundo, foi o que senti”, lamenta. Angolana de nascença e de coração, portuguesa por circunstância, apesar disso, Guilhermina sente-se em casa. “Em setembro deste ano faço 75 anos e, olhando para trás, vejo como a minha família se tornou a maior herança que deixarei”, diz enquanto olha para a grande moldura da fotografia de família que tem exposta na entrada da casa. Hoje tem seis netos, o mais velho, Francisco, já com 24 anos “desde os oito anos que não perde uma corrida de Fórmula 1” com a avó, que domina o desporto como uma verdadeira fã. Guilherme, no auge dos 20 anos, e o seu irmão Tomás, nos doces 16, “todos os domingos vêm almoçar e fazem da casa uma alegria contagiante”. Mafalda, a primeira neta, “já tem 19 anos, mas será sempre a netinha que todas as sextas-feiras adormecia ao meu lado a ouvir histórias de Angola”, confessa. Já Inês, de 8 anos, e o Pedro, com 4 aninhos, “estão mais longe, em Madrid, mas enchem-me e rejuvenescem-me a alma quando cá estão”, assegura Guilhermina, com os olhos brilhantes e o sorriso inalterável.
Regressar ainda faz parte do sonho
A esperança, a alegria e a perseverança acompanharam Guilhermina desde a sua infância. “A paz conquista-se com perspicácia e tolerância”, como defende. Contudo, o amor fora o sentimento impulsionador que fez girar a sua vida, “sem nunca ter desistido de lutar”.
“Acho que foi Fernando Pessoa que escreveu que a “a vida é uma fonte inesgotável de surpresas”, e foi, sem dúvida.” Não obstante as dificuldades, as mudanças radicais, o medo, a angústia que sentiu tantas vezes, Guilhermina sorri. “Sonho com Angola várias vezes, são memórias muito bonitas e que me deixam a transbordar de saudades, talvez um dia ainda regresse.”, diz com alguma incerteza. “O que sei é que hoje estou feliz, porque sinto que dei o meu melhor, sempre, e amei com tudo que tive para amar”.