José Silva dedica os seus dias a trabalhar numa cozinha desde os 14 anos de idade. Completou este ano o seu quadragésimo sexto aniversário e afirma que não se imagina a exercer outra arte que não a da culinária.
Nasceu na pequena aldeia de Valença do Douro, em Viseu, onde a paisagem montanhosa dominada pelos extensos vinhedos, oferecia aos moradores a sua principal fonte de rendimento e sustento: a agricultura. As famílias menos abastadas investiam os seus dias na lavoura, arrastando também os mais novos para o ofício que, em grande parte dos casos, viam-se obrigados a conciliar o estudo com a necessidade de trabalho: “levantava-me muito cedo, trabalhava com os meus pais até às 11 horas, almoçava e de tarde ia para a escola”, explicou José.
Foi o cansaço causado pela exigência da rotina que o fez desistir de estudar e procurar por um trabalho e, um mês antes de completar 14 anos, apenas com o sexto ano de escolaridade concluído, entrou num comboio com direção ao Porto à procura de um futuro diferente daquele a que estava destinado. “Fui primeiramente lavar pratos, era tão pequeno que para chegar à banca tinha de subir para uma grade de cervejas vazia”, menciona ao relembrar os primeiros dias no restaurante, “O búzio”. Recorda ainda o medo que sentiu ao ver o seu chefe pela primeira vez: “ele era tão grande que eu fiquei cheio de medo.”
Seguia um horário muito rígido – às 11 horas entrava ao serviço e daí até às 1h da madrugada ficava a lavar a louça que se ia acumulando. Vivia dentro do próprio restaurante “num quarto muito pequeno que tinha acesso pela cozinha”, onde não havia propriamente condições de estadia. Partilhava-o com um colega de trabalho e apesar da dimensão, foram inúmeras as vezes que a divisão se enchia de amigos, onde conviviam e descansavam após as habituais saídas noturnas pelas ruas da Invicta. Realça ainda os serões passados a chorar com saudades de casa, a exploração laboral e a violação de direitos básicos que sofreu durante os primeiros anos de trabalho. “Ganhava 30 contos e até aos 17 anos só ficava com 5, o resto dava tudo aos meus pais”, explica e refere que, apesar do panorama de emigração que se observava na altura, nunca lhe passou pela cabeça abandonar Portugal numa tentativa de procura por melhores condições.
As horas a fio passadas dentro do ambiente de cozinha fizeram despertar em José a curiosidade de aprender mais sobre a arte da culinária e, a certa altura, decidiu formar-se na área, inscrevendo-se na Escola de Hotelaria do Porto. Desde “pastelaria de 2ª” e “doces conventuais” até “cozinha de 1ª” foram várias as especializações que completou com o aproveitamento necessário para, mais tarde, ser possível se vir a tornar num chefe de cozinha. Não obstante as restantes competências culinárias que adquiriu, confessa que tem um gosto especial pela confeção de pratos típicos da gastronomia portuguesa.
“Adoro cozinhar, mas é cansativo devido à carga horária. Um cozinheiro não tem direito a feriados ou fins-de-semana e muitas vezes a vida pessoal tem de ficar para segundo plano, por isso é que nunca cozinho em casa”, admite, reconhecendo que é necessário um elevado sentido de comprometimento e responsabilidade de quem se submete à área de restauração, uma vez que “nunca se está cem por cento desligado do serviço”. Para além disso, reconhece que “não há quem queira trabalhar em cozinhas” e justifica-o com o facto de atualmente haver um maior incentivo ao estudo de ramos profissionais que apresentem melhores condições para o trabalhador. Ainda que essa realidade o afete diretamente, mostra-se compreensível, admitindo que não aconselha o seguimento da carreira de cozinheiro a ninguém.
À semelhança de José, as suas duas irmãs entraram no mundo do trabalho em tenra idade, colocando assim uma barreira à progressão dos estudos. Ao contrário do panorama social observado atualmente, na década de 90 “havia pouco incentivo ao estudo” e uma priorização do trabalho precoce. Apesar de só ter completado a escolaridade até ao sexto ano, o cozinheiro mostra-se uma pessoa sábia – o conhecimento que hoje possui, adquiriu com as experiências e desafios que lhe foram colocados durante toda a sua vida. “Trabalhar tão jovem trouxe-me muita responsabilidade e vontade de vencer”, explica José, mostrando-se orgulhoso por tudo o que alcançou – “Na altura, o meu maior objetivo era ajudar os meus pais que tinham acabado de construir uma casa e, mais tarde, comprar um apartamento e construir uma família”. Ainda assim, a sede de aprender acompanha-o até hoje e são inúmeras as tardes que despende a ver documentários, séries televisivas e até programas educativos.
“Não ter avançado com a escolaridade afetou a minha carreira de certa forma”, reconhece, acrescentando que gostava de ser fluente na língua inglesa. Acredita na importância do ensino escolar obrigatório e superior. Tem uma filha na universidade e sempre a incentivou a prosseguir com os estudos, numa tentativa preocupada de garantir que a mesma tenha um futuro melhor que o seu: “É na escola que se adquirem as bases para o mundo profissional.” Caso a vida tivesse tido outro rumo, gostava que fosse na área da mecânica: “Adoro tudo o que seja eletrónico e que esteja relacionado com motores.”
Pelos restaurantes que passou – um total de três até à data – trouxe as cicatrizes mal saradas de queimaduras causadas por tachos a temperaturas elevadas, as mãos fortes e calosas de os transportar e a falta de cabelo provocada pelo chapéu do uniforme. Contudo, carrega também consigo várias lições de vida que moldam a pessoa que é hoje. Após abandonar o primeiro restaurante onde trabalhou durante 23 anos, deparou-se com uma realidade bastante dissemelhante ao que estava habituado: “Passei de cozinhar 5kg de arroz para 50kg por dia.” No ‘Maximus’ – restaurante onde trabalhou durante 5 anos – reinava a loucura, a adrenalina e o cansaço devido à grande afluência de clientes e serviço. Esta realidade mostrou-lhe que nem todas as formas de trabalhar são iguais, ensinando-o, desta forma, a procurar estratégias com vista a lidar de melhor forma com os seus colaboradores. “Mesmo quando damos o nosso máximo, as pessoas não são capazes de reconhecer”, confessa, acrescentando ainda que a satisfação pessoal é o único retorno de que necessita. Atualmente trabalha numa confeitaria com serviço de take-away, orgulhando-se da sua contribuição para a reforma do mesmo que, consequentemente, contribuiu para um aumento das receitas do estabelecimento.
Como consequência das más experiências que viveu devido ao facto de se entregar ao mundo do trabalho em tão tenra idade, José dá o seu melhor para que as pessoas que tem hoje a seu encargo, tenham uma experiência melhor que a sua e, principalmente, que se sintam bem no local de trabalho e experienciem as maravilhas que a arte da culinária tem para oferecer. Ainda assim, por mais que tenha fugido de um futuro na área da agricultura, encontra o seu conforto na prática, possuindo um pequeno quintal que cuida nas horas vagas.