“Algum dia vai mudar para melhor, nunca se pode perder a esperança, porque também, o que é uma vida sem esperança?”. Apesar de apenas ter atingido a maioridade recentemente, Angel já levou uma vida bastante conturbada, só tendo encontrado a paz recentemente.
Nascida a 16 de outubro de 2005, na Índia, mais especificamente nas margens do rio Chambal, na cidade de Kota, estado do Rajastão. Filha de Poonam Kaur, esteticista de quem fala com muita admiração, e Raja Singh, trabalhador rural. Aos 18 anos de idade, Angel Bandesha já passou por mais do que qualquer um desejaria, aprendeu a lidar com alcoolismo na família, morte e diversas dificuldades desde muito nova. Hoje, apesar de ser difícil mostrar-se vulnerável por medo de ser julgada, quer partilhar a sua história. “Estas histórias de vida são muito importantes e devem ser partilhadas, talvez se eu tivesse tido contacto com alguma não me teria sentido tão sozinha durante a infância”.
Aos 5 anos de idade, em julho de 2010, mudou-se da sua terra natal para Portugal com o intuito da família conseguir o passaporte vermelho, para assim, entrar em países da União Europeia como cidadãos europeus e não como estrangeiros, “aqui (Portugal) é mais fácil conseguir nacionalidade”. Para além disso, já tinham viajado para Portugal antes e apaixonaram-se pela tranquilidade e segurança. Na Índia vivia entre Jaipur, onde vivem os avós maternos, e os irmãos da mãe, e Kelwara, a zona rural onde passava a maior parte do tempo, aqui vivia com o lado paterno da família, com o pai, o irmão e a mãe. “Não tenho saudades nenhumas da Índia, só da família da minha mãe”. Enquanto explica isto, auxilia a memória com uma folha de papel e um lápis para desenhar a árvore genealógica do lado do pai, uma família muito tradicional indiana. Explica então, que os pais se apaixonaram muito novos, e a mãe, com apenas 18 anos na altura fugiu da casa dos pais para conseguir viver um amor que estes não aprovavam, algo que Angel admira, “nunca teria tamanha coragem”. Foram muito sofridos os anos que Poonam passou quando teve que se mudar para a casa do marido, algo que é norma na Índia, sofreu muitos abusos verbais por parte das cunhadas que lhe faziam a vida negra. Passado um ano de casamento, em 1992, nasceu Dhruv, irmão mais velho de Angel, que viria a falecer 23 anos depois. “(Dhruv) significa estrela do Norte, agora esse significado tem muito mais sentido para mim”. Angel, refere o período pós o falecimento do irmão como dos mais difíceis da sua vida, devido às discussões frequentes dos pais. Ao falar deste tema, os seus olhos enchem se de lágrimas. O seu pai, Raja, sempre foi um alcoólico, contudo, piorou depois da morte do filho, começou a beber todos os dias e a tornar-se agressivo. Por outro lado, a sua mãe descarregava a raiva que sentia no marido, isto tornava as discussões, para além de constantes, assustadoras.
Em relação ao choque cultural, Angel admite que foi bastante mais complicado para os pais, “Para mim não foi muito grande (o choque cultural) porque era muito nova, no início a língua foi um problema, mas adaptei me rapidamente”, relembra ainda, com um certo orgulho, que o seu professor da escola primária considerava a aluna melhor na disciplina de língua portuguesa do que muitos dos colegas portugueses. Porém, tinha muitas vezes a tarefa complicada partilhada por muitos filhos de emigrantes, de ajudar os pais, pois estes tinham muitas dificuldades na comunicação, visto que só falavam hindi, panjabi e muito pouco inglês. Assim, acompanhava a mãe a todas as reuniões dos pais, sendo a única criança lá, tirava os apontamentos para depois poder traduzi-los. Era também das poucas crianças que ia e voltava sempre a pé para a escola primária, pois os pais encontravam se os dois a trabalhar e não tinham carro. O pai trabalhava como carteiro e a mãe limpava casas e fazia sobrancelhas, ambos ganhavam menos do que um salário mínimo. “O meu avô paterno tinha de nos mandar dinheiro no início, era muito complicado. Os meus pais andavam sempre stressados o que piorava as lutas entre eles, e eu sentia medo e culpa por simplesmente existir.”.
No começo, viviam com mais sete homens emigrantes da Índia, estes vinham de uma cultura baseada no machismo, na inferioridade e submissão do género oposto, faziam com que a única mulher da casa, Poonam, realizasse todas as tarefas domésticas. Esta limpava a casa e cozinhava o almoço e o jantar para todos. Angel defende que, apesar de para a sua mãe aquilo ser algo muito normal, afinal a Índia é apontada como um dos países mais machistas do mundo, estruturada numa sociedade patriarcal, agora que é mais velha apercebe-se da tristeza da situação e de como se aproveitaram da mãe. Foi também nesta casa que se deu a primeira luta física entre os pais de Angel, esta explica que na altura o pai bebia muito. A jovem adulta traz de volta à memória estar parada entre os pais a implorar para que estes parassem após altercações físicas, afirma que a morte do irmão afetou imenso a sua relação e vidas. “Já se tinha tornado normal ver os meus pais a discutir e o meu pai bêbado.” Relativamente ao alcoolismo do pai, Angel diz quase ter destruído a família, “ele é muito boa pessoa, mas o álcool transformava-o”, apesar disto indica o pai, que atualmente esta sóbrio, como um dos seus maiores orgulhos, juntamente com a mãe.
Durante a primária, notou algumas dificuldades ao fazer amigos, só começou a ser mais social a partir do 5º ano, “eu era vista como a criança estranha que trazia comida esquisita para a escola”. Para além disso era definida como uma criança com a “cabeça na lua”, sentia-se diferente dos outros colegas, comparava a sua vida conturbada, às vidas normais da maior parte das crianças de 10 anos. Acrescenta ainda, que a comparação é dos seus maiores defeitos, algo que até hoje a afeta e está a tentar melhorar.
Relembra o dia negro de outubro de 2015, em que o seu diretor de turma do 5º ano foi chamá-la à sala de aula, pois tinha acontecido algo com o irmão. Lembra-se vividamente de tentar perceber o que se estava a passar, mas a mãe, entre lágrimas e soluços, não tinha a força necessária para esclarecer a filha, tendo apenas dito que no dia seguinte iriam voltar para a Índia. Destacando a mudança cultural entre o país de origem e o de acolhimento, Angel declara que lá as pessoas expressam o luto ou a dor de forma muito barulhenta e expressiva, como que sem medos, segundo a entrevistada, a chorar aos “altos berros”. Isto porque tem memórias de estar a um canto do quarto a chorar baixinho, ainda sem saber o que tinha acontecido ao irmão, enquanto a família ruidosamente chorava e gritava na divisão ao lado. Com a voz a tremer e a rabiscar nervosamente na mesma folha de papel, rememora o momento em que o pai lhe disse que era definitivo, o seu irmão tinha falecido, Angel limpa as lágrimas a escorrer com a parte de trás das mãos, “foi a primeira e única vez que vi o meu pai a chorar”. Morreu de forma trágica, a 6 de outubro de 2015 (10 dias antes do aniversário de Angel), após bater com a cabeça quando se despistou a andar numa mota, na qual vinham 3 pessoas. Contudo, Dhruv foi o único que acabou por morrer, salvando um dos outros, pondo o seu pé por baixo da cabeça do sobrevivente.
Angel passou muito pouco tempo da sua vida com o irmão devido à vinda da família para Portugal, da qual Dhruv não fez parte devido a uma série de problemas burocráticos, que estavam a ser resolvidos mesmo antes da sua morte. Portanto, passou os primeiros 5 anos de vida com ele e um mês durante as férias de Natal. Apesar disso, recorda-o como um rebelde, um apaixonado pela dança e, acima de tudo, um irmão mais velho protetor que lhe metia às cavalitas e tratava-a por “irmãzinha”, alguém com quem Angel se sentia sempre segura. “Sinto que só estou agora a processar a morte do meu irmão”. Com a rapidez que nos assoberba e é característica dos dias que vivemos, são raros os momentos de reflexão em que as pessoas se sentam a pensar em como se sentem. Angel confidenciou ainda, que como aconteceu tudo tão rápido, mal teve tempo para realmente coexistir com este sentimento de quem perde um irmão mais velho, nem chegou a percebê-lo muito bem. Para além disso, sentia nos seus ombros a carga de “tomar conta” da mãe, que nesta altura se encontrava numa profunda depressão.
“Algum dia vai mudar para melhor, nunca se pode perder a esperança, porque também, o que é uma vida sem esperança”, seria a frase que Angel, agora na universidade e bem consigo própria, diria ao seu “eu” do passado, à criança de 11 anos que sentia todo o peso do mundo nos seus ombros, sem esperanças para uma luz ao fundo do túnel.