Afinal, o que significa descolonizar hoje? Se para alguns autores, a vida pode ser comparada a um ensaio de teatro, presumo que se possa então assumir que assim como numa peça, existem os seus atores, os espectadores e um palco. Este palco, na minha visão pessoal, tantas e tantas vezes, nada mais tem sido do que a política. Tudo é político…
Quando pensamos na economia, na educação, na cultura, na vida social como um todo, não nos podemos esquecer que todas estas áreas e instituições se interligam, como um sistema de relações, atrevo-me a dizer desigual e injusto, do qual acabam por resultar consequências. Para quem está do lado mais alto da balança, as consequências acabam por ser vantajosas, mas para os restantes, os efeitos têm vindo a mostrar-se nefastos e a repercutirem-se no tempo.
Quando se aborda a questão da descolonização, muitos encaram-na como um projeto já terminado, como algo que se concretizou. Para alguns, é apenas mais um conteúdo programático dos manuais de história… e para outros, o seu significado é completamente desconhecido. Na verdade, quem o pode definir?
Seria muito fácil arranjar uma designação simplista e redundante que explicasse numa linguagem fácil o que se entende por este conceito. Se procurarmos no dicionário, e lermos a sua definição, este diz-nos que descolonizar é o ato de «Pôr fim ao regime colonial de um território ou de um país; libertar de um poder colonizador.» – “descolonizar”, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2025, https://dicionario.priberam.org/descolonizar.
Se folhearmos agora os livros de história ou fizermos uma pesquisa rápida também nos irão induzir a pensar que esse processo de emancipação vivido, e para o qual certos acontecimentos históricos foram favoráveis, como, por exemplo, o aparecimento de certas organizações como a ONU, entre outros meios que permitiram essas mudanças, de algum modo se referem a um passado longínquo. Como se existisse uma rutura entre o período colonial e o mundo atual, em que nos inserimos. Contudo, se analisarmos bem as relações de poder dos dias de hoje, esse passado não parece estar assim tão distante, aliás, tem-se mostrado bastante presente.
Talvez, precisamente, por esta falta de consciência acerca de que a descolonização não se trate meramente de um processo mas sim de um projeto inacabado, ao qual falta muito para acrescentar. Será que os países outrora colonizados, se libertaram realmente? Se sim, até que ponto é que todas essas conquistas e formação de estados e nações garantiram a sua independência? E de que forma é que lhes foi concedida?
Para mim, esse é o cerne da questão. Basta fazermos uma comparação a nível económico, e rapidamente percebemos que continuam a existir dominados e dominantes, e quanto a isso, entristece-me dizer que os papéis não parecem ter trocado muito. Persiste ainda, toda uma consciência coletiva e sistémica, baseada numa ideia preconceituosa de superioridade face a certos povos, que só tem servido para continuar a justificar atos discriminatórios, violência, conflitos. Os tempos evoluíram mas será que a mentalidade também acompanhou essa evolução?
Errado seria dizer que não existiram mudanças, é certo que houve uma transição, mas a pobreza, as desigualdades, a segregação, a privação, estes e muitos outros aspetos, continuam a constituir um problema, que para mim agora é ainda mais grave, dado que julgo que a única diferença é de que está apenas mais mascarado e talvez por isso, mais “invisível” e passe mais despercebido.
A dita independência não parece servir de muito, quando existe apenas no papel, mas na prática, o que se pode verificar é que as reformas sociais e económicas estabelecidas continuam a ser insuficientes para mitigar todas estas fragilidades e crises. Descolonização parece-me apenas um termo “soft” de dizer que o imperialismo que antes era visto a olho nu e cru, considerando que hoje em dia, esse atos outrora praticados, seriam censuráveis e condenáveis, possam continuar a repercutir-se de uma maneira “legitimada” e debaixo dos nossos narizes, sem que pouco ou nada façamos acerca disso.
Num mundo, onde o informacionalismo e a globalização têm influenciado intensamente a forma como as notícias que consumimos são divulgadas, onde os tempos são cada vez mais líquidos e caracterizados por uma forte rapidez de mudanças e instabilidade, é “fácil” disseminar informação, difícil é fazer a filtragem da mesma e esquecermo-nos de questionarmo-nos e principalmente falarmos acercas de certos assuntos tão importantes como é este, que acabam por ir saindo de palco, e surgem por sorte, quando se trata de comemorar alguma data importante.
Enquanto os holofotes se focam apenas em relatar os factos, através de uma narrativa e de uma perspetiva de quem os controla e manipula, esquece-se ou é mais conveniente não falar acerca do que está subjacente a tudo isso. A única coisa que parece estritamente relevante é compreender o presente, e assim se vai pondo de parte um passado, cuja análise e interpretação são, no meu entender, mais do que necessários para explicar a causa de tudo o que acontece no contemporâneo, bem como procurar melhores soluções.
Dando um exemplo muito simples, quando falamos em conflitos bélicos que estão a ocorrer atualmente, se procurarmos bem entender as raízes do problema, compreendemos que a suas origens provêm maioritariamente de questões coloniais, de divisão geopolítica, disputa pela ocupação de territórios…
Ou seja, lutas de poder de forma a tentar assegurar esse mesmo poder, nem que para isso, uns continuem a ser explorados em prol da riqueza de outros…
Só com isto, percebemos que esse passado tão marginalizado, tem vindo a ser reproduzido ainda que se assuma sob novas formas e as circunstâncias sejam outras.
Talvez por isso, seja errado dizer que a história se repete. Efetivamente, ela não se repete, mas testemunha os acontecimentos através dessa análise historiográfica, através da qual podemos aprender muito, mais não seja, a evitar cometer os mesmos erros. A própria ideia de linha temporal e dissociação entre o passado e o presente, são para mim um dos problemas principais no que a isto diz respeito. Enquanto o ato de descolonizar se referir apenas a um ato físico, e em nada, corresponder a uma desconstrução mental de certas interpretações, torna-se mais difícil acabar com esta espiral.
Por isso, mais do que nomear um ato de libertar/tornar independente/emancipar, descolonizar e democratizar é, ou pelo menos deveria ser correspondente ao processo contínuo de relembrar, para que todos os direitos alguma vez conquistados, não corram o caim no retrocesso, além de nos fazer interrogar, acerca dos verdadeiros resultados desse processo. Com isto, concluo que descolonizar hoje, é convidar à reflexão acerca de um passado, interpretar o seu impacto no presente, repensá-lo, e construir hoje, um futuro mais justo, equilibrado e inclusivo, para todos, sem exceção!
Para isso, parece-me parte fundamental reavivar a memória, através de uma narrativa contada pela lente das vítimas e não dos culpados, e evitar que mais uma vez, esse padrão colonial e imperial, prospere e se continue a reproduzir no tempo.
A liberdade alcançada é como as plantas, assim como elas, se não continuar a ser regada, também pode acabar por morrer.