Donzília Fernandes: Entre Oceanos e Memórias, Uma Odisseia Extraordinária
Donzília Pereira Neves Fernandes nasceu no dia 23 de setembro de 1945, em sua casa na localidade de Marinha das Ondas, uma pequena aldeia cheia de charme e comunidade unida, bastante pitoresca e pacífica em Portugal. Esta é a região onde reside atualmente. Filha de Gracinda Neves e Manuel Neves, Donzília é a mais nova de três filhos, cresceu ao lado dos seus irmãos, Odete e Ramiro, envolta num ambiente familiar de fortes laços, muito amor e bastante união.
INFÂNCIA E JUVENTUDE
Na sua infância, Donzília era uma menina de longos e cacheados cabelos escuros, bastante aventureira e vivaz que como forma de divertimento adorava brincar na rua com as restantes crianças da sua aldeia. Uma das suas memórias mais engraçada e preservada nas suas lembranças é o dia em que Donzília e o seu aglomerado de amigos foram levados para o posto da polícia por terem decidido entrar sem autorização, na quinta de uma senhora de idade trepando às árvores para apanhar fruta e posteriormente a comer. A situação acabou por se tornar ligeiramente mais séria, porém dado o cariz da circunstância, não passou de uma brincadeira pura, repleta de gargalhadas e muita união entre aquelas crianças que tanto se divertiram e apoiaram umas às outras, perpetuando no tempo e nas suas memórias estes dias de liberdade e pureza. Aos sete anos, Donzília começou a frequentar a escola primária local. Embora fosse apaixonada pela aprendizagem, o seu período escolar foi curto. No seu 4º ano de escolaridade viu-se forçada pelo seu pai, a abandonar os estudos com o objetivo de auxiliar a família a cuidar de gado bovino, o que marcou desta forma, o início da sua vida enquanto trabalhadora.
PRIMEIROS TRABALHOS E ADOLESCÊNCIA
Donzília, uma avó espetacular, com os seus 14 anos já era uma adolescente trabalhadora, embora tendo em conta a época em questão, era considerada uma rapariga com uma vida bastante aceitável, sendo que não passava grandes dificuldades. Ainda jovem, portanto, Donzília trabalhou como governanta durante dois anos, numa casa de uma família abastada em Buarcos, uma região situada na cidade da Figueira da Foz. Apesar de ser um trabalho árduo, ela lembrava-se desses anos com carinho, especialmente de uma ocasião em que a sua patroa como forma de presentear o seu excelente trabalho, lhe ofereceu uma blusa de uma marca conceituada da época.
Dois anos depois regressou à sua localidade, Marinha Das Ondas, continuando a trabalhar como empregada doméstica. Apesar das dificuldades, Donzília manteve sempre um espírito resiliente e otimista. De facto, Donzília tinha uma vida bastante comum, a vida de uma mulher que vivia na aldeia naquela época, ainda assim, minimamente boa para o período em questão.
Naquela altura vivia-se em Portugal num regime de ditadura governado por António de Oliveira Salazar, onde se sucediam vários golpes com a tentativa de derrubar este mesmo regime de ditadura militar. A mulher tinha como papel na sociedade, a função de doméstica, mais tarde, existiu um acesso elevado ao trabalho assalariado por parte das mulheres, fosse nas fábricas ou mesmo na área dos serviços que ocorriam em substituição à agricultura familiar e ao trabalho doméstico.
CASAMENTO
Uma noite de verão com os seus 18 anos, a minha avó foi a um baile da sua aldeia, como era típico da época, onde um homem chamado Manuel Fernandes a convidou para dançar. No entanto, a Donzília não lhe agradou a ideia recusando o convite. Porém, Manuel era insistente e voltou a tentar conquistar a atenção desta mulher que aos olhos dele era e continua a ser perfeita. Foi um amor nascido numa noite perfeita, mas os tempos eram desafiadores, pois assim que começaram a namorar Manuel foi logo convocado para a tropa em Tancos. Manuel era um homem repleto de surpresas e certo dia, fez uma surpresa a Donzília, sobrevoando numa avioneta a sua aldeia, Marinha Das Ondas, com uma declaração de amor. Donzília afirma, “Aquele homem era doido, fazia-me surpresas destas, mas enterneciam-me muito.”.
Namoraram à distância durante três anos, trocando cartas cheias de saudade e promessas de um futuro juntos. Finalmente, casaram-se no dia 1 de janeiro de 1966, uma cerimónia modesta, mas repleta de amor, muita felicidade e esperança. Contudo, no dia do seu casamento, Manuel recebeu uma notificação da Força Aérea para ir em missão no dia seguinte ao seu matrimónio, o que entristeceu Donzília permitindo apenas uma noite de núpcias três semanas depois.
VIDA EM MOÇAMBIQUE
Quase um ano após o seu casamento, no dia 25 de dezembro de 1966, nasceu a sua primeira filha, Natália Maria Neves Fernandes Silva. Logo após o nascimento de Natália, Donzília começou a trabalhar numa padaria, um trabalho mais evoluído a nível social relativamente aos primeiros que teve. Esse emprego trouxe-lhe uma certa independência e orgulho, mas em 1967 o seu marido foi mobilizado para Moçambique, mais especificamente, para a Beira durante um ano e apenas após esse primeiro ano é que Donzília se juntou a ele com a sua filha e a sua cunhada. Na Beira, a vida de Donzília era de doméstica, nunca trabalhou e viveram lá durante três anos. Ao longo desses anos, Donzília passeava com a sua família e aproveitava os tempos livres do seu marido para isso mesmo. Lá, a vida era uma pequena aventura, Donzília e a sua família passeavam frequentemente pelo Parque Nacional da Gorongosa, situado em Maputo, antiga Lourenço Marques. Este parque situa-se, portanto, no coração da zona central de Moçambique e é considerado por muitos, um dos melhores parques naturais de todo o mundo, inclusive atualmente os cientistas tomam a Gorongosa como um dos parques nacionais mais originais e especiais na nossa Terra, um sítio que sem dúvida, deve ser preservado durante toda a vida de todas as gerações vindouras. Donzília lembra-se com emoção da primeira vez que viu um leão no safari, um momento que ela descreve como “mágico e aterrador”, pois nunca na sua vida tinha visto nada igual. No entanto, são todas memórias magníficas que ela recorda até aos dias de hoje.
Entretanto, dá-se o seu regresso a Portugal novamente. Todavia, a estadia em Portugal foi curta, passado um ano, Manuel volta a ser mobilizado para Moçambique só que desta vez para Nampula. A vida de Donzília era mudar de habitação, de local, de país até, várias vezes devido à profissão do seu marido, militar da força aérea. Não era fácil para ela, porém a sua filha ainda era uma menina com 7 anos de idade, o que tornava a situação um pouco mais leve e menos caótica. Chegaram a Nampula, portanto em 1972.
Os primeiros meses de Donzília em Nampula, mais uma vez, foram apenas de vida doméstica. Entretanto, Donzília trabalhou num grande supermercado como operadora de caixa. Destaca o seu trabalho neste supermercado como, “Era um edifício muito grande, trabalhava lá imensa gente e eu gostava muito de lá trabalhar, sentia-me útil e as pessoas gostavam bastante do meu trabalho e de mim enquanto pessoa, o que era algo muito satisfatório uma vez que eu era para todos eles, uma estrangeira, uma mulher branca no mundo negro.”. Destacou-se pela sua simpatia e eficiência, ganhando a amizade e confiança de muitos moçambicanos. Algum tempo depois, grávida de sua segunda filha, Maria de Fátima Neves Fernandes, Donzília deixou o emprego no supermercado e nessa época chegou a fase mais marcante de toda a sua vida profissional.
Em 1973, abriu na força aérea, onde o seu marido trabalhava enquanto militar, um concurso de datilografia. Incentivada por Manuel, este trazia todos os dias à noite para casa uma máquina de escrever e ensinava a sua mulher a datilografar. Donzília revela, “Inicialmente quando o teu avô me falou do concurso, fiquei muito reticente em avançar, porque além de apenas ter feito a escola até ao quarto ano, tinha medo de não conseguir, era uma mulher branca a tentar algo que não sabia se ia ter sucesso.”. No dia do concurso, contra todas as probabilidades, foi uma das 10 selecionadas entre 40 concorrentes. Tornou-se datilógrafa, uma posição que lhe trouxe imenso orgulho e satisfação.
Donzília orgulha-se muito desta fase da sua vida profissional, para ela esta foi a profissão que mais gosto lhe deu, tal como ela menciona, “Tornei-me então datilografa da força aérea que foi o melhor trabalho que tive até aos dias de hoje e que mais conhecimento e reconhecimento me deu.”.
Donzília enquanto datilógrafa teve um senhor moçambicano de origem indiana, Ari, que lhe ensinou tudo o que ela precisava de saber, foi uma pessoa muito importante para Donzília, estabelecendo-se uma ligação de amizade tão grande entre ambos, que quando Ari se casou, Donzília e toda a sua família foram ao casamento. Donzília gostava muito deste senhor, como ela declara, “Ele deu-me a mão, algo que os brancos tal como nós, muitas vezes não faziam, foi uma pessoa muito importante naquele posto de trabalho e na função que desempenhei.”. É de salientar que este rapaz, tinha o quinto ano de escolaridade e naquela época, o quinto ano já era um grau de estudos avançado.
Entretanto, no dia 28 de julho de 1973 nasceu Maria de Fátima Neves Fernandes, uma filha nascida, tal como Donzília enaltece, “num berço de ouro”. A vida de Donzília em África era muito boa relativamente à sua vida em Portugal. Em Nampula além de ter uma profissão que lhe dava prestígio, o que para uma mulher naquela época era muito importante, principalmente neste caso, uma mulher branca inserida numa sociedade colorida tinha também um mordomo, o Viriato. Este rapaz servia a família de Donzília e era muito bem tratado, gostava imenso das suas filhas e inclusive, quando Donzília e a sua família estavam para regressar a Portugal, perguntaram-lhe se ele queria ir com eles, porém Viriato não aceitou. Além do mais, Donzília e a sua família iam quase todos os fins de semana passear até Nacala onde existia praia. Este passeio era algo que adorava fazer nos seus tempos livres e tal como destaca Donzília, “Era uma água límpida e de uma cor muito bonita. Durante o caminho até Nacala ao invés de pinheiros como vemos cá em Portugal, viam-se muitas árvores de fruta tropical, principalmente mangais e cajueiros. Era maravilhoso.”.
Em África, a vida do branco era muito boa relativamente à do moçambicano de origens indianas, árabes ou paquistanesas, pois estes tinham sido na altura muito explorados pelo povo branco antes da guerra. Donzília reflete sobre o facto de os militares naquela época terem ido ensinar o povo branco que já residia em África a saber tratar bem o povo moçambicano, “Eles tratavam o moçambicano muito mal, de uma forma muito desumana.” confirma Donzília. Existia uma diferença muito elevada a nível social na vida do negro relativamente á do branco, porém a partir daí, a situação começou a estabilizar-se, tanto do lado do branco, como do negro.
Donzília comenta que como mulher branca em África era vista com prestígio, como uma pessoa importante, ao invés do que acontecia com a mulher negra, que trabalhava na machamba, ou seja, cultivava os terrenos agrícolas.
RETORNO A PORTUGAL E VIDA POSTERIOR
A Revolução dos Cravos em 1974 que marcou o fim da ditadura em Portugal, marcou também o fim das suas vidas em África. Esta Revolução tratou-se de uma ação militar liderada pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), constituído por militares que se encontravam muito descontentes com o regime autoritário e colonialista que existia na época do Estado Novo, Liderado por António de Oliveira Salazar e, posteriormente, Marcelo Caetano. Esta Revolução teve como principais objetivos claramente o fim da ditadura, a conquista das liberdades democráticas, a descolonização dos territórios ultramarinos portugueses tais como Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe e a implementação de um sistema político democrático em Portugal.
Donzília e a sua família retornaram a Portugal, inicialmente em Lisboa, onde Manuel foi designado para a base aérea. Donzília voltou a ser dona de casa, embora mais tarde conseguiram regressar à sua terra Natal, pois quiseram voltar para perto da sua família. Assim se regressou ao início da vida na aldeia, para Donzília foi regredir na vida, regressar no tempo e voltar à vida de trabalho agrícola. Em 1976 comprou com o seu marido uma casa, a qual em 1980 foi destruída e contruída uma nova, onde habitam até aos dias de hoje. Esta foi uma altura bastante complicada a nível financeiro, pois Donzília fazia muitos planos de viajar e conhecer novos sítios com a sua família e atualmente aos 79 anos lamenta que pouco mais viajou.
Durante esse intervalo de tempo, no dia 5 de novembro de 1976, o marido de Donzília teve um grave acidente no qual partiu ambos os pés e durante um ano teve de permanecer internado no hospital militar em Lisboa. Donzília ia com as suas filhas todos os fins de semana visitá-lo, esta não foi de todo uma fase fácil para ela, tal como ela confidencia, “Uma época muito complicada, viajar com as meninas para Lisboa frequentemente, caminhar longas distâncias a pé com a tua mãe a andar e a tua tia Fátima ao colo, e depois ver o teu avô naquele estado, com 38 operações nos pés. Não foi mesmo fácil”. Todavia, Donzília naquela época ainda não sabia o que a vida lhe reservava. Após o acidente o seu marido foi colocado na base aérea de Monte Real, porém devido à situação, como não podia fazer serviço de escala, não podia por isso ascender na sua carreira, acabando assim por deixar a Força Aérea e regressar a casa na reserva. Tudo isto foi algo que o perturbou imenso e permitiu a Donzília e às suas filhas, a entrada numa das fases mais negras das suas vidas. Manuel tornou-se alcoólico e Donzília passou tempos muito difíceis.
Donzília era uma mulher muito independente devido a toda a evolução que a sua vida teve durante a sua vivência em África.
Ainda assim, em 1981, Donzília voltou a sentir-se realizada a nível profissional, não ao nível da sua profissão de datilógrafa que tinha em África, porém dava-lhe gosto e acabava por lhe permitir a saída tanto da vida doméstica como daquele ambiente difícil em que vivia com o seu marido.
Donzília abriu uma mercearia na sua localidade, nomeadamente, Marinha Das Ondas. Nesta loja vendia-se de tudo, desde alimentos a produtos agrícolas, e até mesmo caixões.
A loja tornou-se um ponto de encontro para a comunidade e um refúgio para Donzília, que trabalhava com muita dedicação e carinho. Donzília possuiu a mercearia durante 23 anos, um trabalho que a fez sentir-se útil e ativa novamente. Ao longo de todos estes anos, muito aconteceu na sua vida, as suas filhas conheceram os maridos com os quais permanecem casadas até aos dias de hoje, acabando por ter filhos durante esse mesmo tempo. Ao passo que, Donzília permaneceu numa das fases mais negras da sua vida, pelo menos num primeiro momento, até 1993, data de nascimento do seu primeiro neto e meu irmão, Nelson Fernandes Silva. No decorrer destes 23 anos, Donzília passou dias felizes, mas também dias muito infelizes, o dinheiro que angariava com a loja acabava por desparecer para os vícios do seu marido, acabando por pouco poupar. No dia 15 de novembro de 2003, Donzília acabou por deixar a loja, mais um momento triste da sua vida, pois tinha muitos clientes e todos a adoravam e acarinhavam tanto como pessoa, como boa profissional que era.
RESILIÊNCIA E FAMÍLIA
Após o fecho da loja, Donzília retornou às suas origens, voltando assim, à sua vida doméstica e do campo, passando a cuidar dos netos a tempo inteiro. A vida de Donzília Fernandes realizou uma curva muito acentuada. Começou o seu percurso de uma forma simples e humilde a cuidar de gado bovino, atingindo o seu auge quer a nível profissional quer pessoal aquando da sua vida em África, retornando depois mais tarde ao que fora inicialmente, uma vida de clausura em Portugal, o seu país de origem. Esta curva mostra o contraste existente entre a forma como Donzília vivia em África e como vivia em Portugal, do local de onde tinha saído há muitos anos.
Deste modo, mesmo enfrentando muitos desafios, Donzília mostrando um exemplo de amor e perdão, continua casada com Manuel Fernandes até aos dias de hoje. Mesmo depois de viver tantas amarguras e tantos altos e baixos, o amor prevaleceu e sempre com a esperança de que Manuel deixasse os seus vícios, neste caso, o álcool e o tabaco, mas principalmente, o do álcool. Esta sua esperança acabou por se realizar no ano de 2018, uma das suas maiores alegrias, se não a maior mesmo. Donzília enfrentou muitos e vários desafios ao longo da sua vida, como uma doença rara nos olhos que resultou em transplantes de córnea, tendo o último sido realizado em janeiro de 2024 e mesmo com todas estas provas difíceis a que a sua vida a submeteu, Donzília manteve-se forte e resiliente.
DIAS ATUAIS
Hoje, aos 79 anos, Donzília é uma mulher admirada por todos ao seu redor, por toda a sua família e por mim inclusivamente. Uma mulher, uma melhor amiga, uma avó maravilhosa da qual eu me orgulho muito e a quem devo muito da pessoa que sou enquanto ser humano.
Donzília reflete com saudade sobre sua vida em África, um período que a moldou profundamente, “A minha vida em África com muito menos, era muito melhor do que a minha vida aqui em Portugal,” comunica ela. A sua história é um testemunho de coragem, amor e resiliência e sem dúvida, continua e continuará sempre, a ser um exemplo de mulher para toda a sua família, para todos nós.