Mas o que é a censura? O que é a restrição à liberdade? O que é a ausência de liberdade, senão uma prisão? Vivemos numa aparente democracia, que prima pelas recorrentes vozes, que se dizem, protetoras, maioritariamente advindas dos técnicos e peritos tomadores de decisões que integram os regimes de poder – ou não deveriam ser eles as figuras menos suspeitas de qualquer tipo de prática que atentasse contra a liberdade? E são estes auto-proclamados protetores dos cidadãos, quais seus subservientes, que evocam a aplicação de mecanismos de censura no meio digital, mas… só querem o nosso bem, não é verdade? Querem proteger-nos e como tal podem investir-se do poder de censurar. Mas… talvez, o erro seja meu, talvez esteja a ser má. Pois bem, tentarei ser justa. Estes senhores, estes que supostamente tomam as decisões segundo e em prol do interesse comum, se censuram é para nosso bem, é para nos proteger. Mas, não será essa a teoria apregoada e subjacente a todos os regimes ditatoriais? Todos eles, em última análise, proclamam sempre a célebre justificação da consecução do bem de todos os cidadãos, consecução esta posta em marcha nem que isso implique ‘calá-los’ a todos. É muito simples na verdade. Podem inclusive tentar nas vossas casas. Atrevam-se! Têm um papel à mão para anotar todos os ingredientes necessários para ‘cozinhar’ uma inusitada censura? Pois anotem. Limitem-se a ser bem sucedidos na divulgação em fluxo circular de uma série de conceitos amplos e gerais, temperados com uma pitada de moralidade pelo meio, de forma a convencer toda a ‘gente’ à vossa volta que é extremamente positivo e benéfico para a sociedade comprometer, e até impedir o acesso do cidadão, individual e subjectivamente considerado, à pluralidade da informação e da expressão do pensamento. Ainda estarei a ser má?
Eis a minha visão acerca da censura. A censura é uma ferramenta que tem como propósito restringir a pluralidade de opiniões e de pontos de vista, promovendo de forma impositiva um pensamento único. O cumprimento de tal objectivo, importa frisar, anda sempre de mãos dadas com medidas de coerção, repressão e/ou intimidação, mediante legislação ou através de uma ‘agressão’ declarada ao seus destinatário. Mas não apenas destes ‘pequenos’ recursos se mune a censura. Não. A censura como censura que é, vai mais além, e abrange a alarmante e, contudo, possível, qualidade de suprimir e comprometer aspetos da realidade, desacreditando e desqualificando os mesmos, até os remeter para a inexistência. Isto ocorre, principalmente, porque uma vez implementada a censura, qual repreensão severa que nos tolda e veda as mentes, quem quer falar alto que tal facto existiu é colocado no limiar da porta e, ainda que queira elevar a voz, não consegue gritar, não lhe é permitido expressar que a realidade não equivale ao que foi contado ou instilado, escurecendo-se os factos a uma tal negritude, que cerram os meios de prova de quem disse ou fez o que lhe é imputado. Aliás, é justamente essa omissão, esse termo ‘impotente’ do exercício de cidadania, que, hoje em dia, as sociedades regidas pelos princípios da democracia admitem sem dificuldade ou hesitação na sua vida pública – o que advém sobretudo da concentração oligopólica dos órgãos de comunicação social, do poder económico, das indústrias culturais e inevitavelmente do poder político a que todos os elementos da sociedade estão indexavelmente ligados. E, desta astuta conjugação de fatores decorre, que a embrutecedora ‘inexistência’ é estendida lenta e subrepticiamente na democracia atual, na qual ações, expressões de pensamento, tomadas de decisão, acontecimentos, manifestações artísticas ou publicações apenas deixam de… surgir, não obstante nada tenha verdadeiramente sido proibido. Não são divulgados, carecem de destaque informativo, não é dada voz ou protagonismo aos seus intervenientes ou impulsionadores dos factos e, quando atravessam o ‘muro’ alto e espesso do silêncio, é num ‘piscar’ de olhos que desaparecem novamente. Porém, a desprezível e inaceitável realidade será sempre obstada por uns quantos que argumentarão que de longe tal poderá ser conceptualizado como censura, evocando as naturais regras de funcionamento de mercado no geral, e concretamente as das audiências, daquilo que o povo quer, quando concerne ao conteúdo noticiado e merecedor de ênfase nos meios de comunicação. No entanto, no decurso histórico de que o homem fez parte, atentemos que a censura permitiu-se vestir as mais diversas roupagens, e que igualmente diversos foram os subterfúgios que a sustentaram e permitiram a sua execução.
Na atualidade, é o mercado e as significações que este implica, que justifica o erguer da tão ‘disfarçada’ censura, e por conseguinte, são eliminados, num nível largamente superior, os factos e os pensamentos que um círculo restrito decide que não nos devem chegar aos ouvidos. A nova e atual realidade, omite juridicamente, é certo, a censura, e não existem proibições que trespassem o legislado, mas não será essa uma lacuna, paradoxalmente oposta, ao art.2o da Constituição da República Portuguesa, que cito: “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, no pluralismo de expressão e organização política democráticas, no respeito e na garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes, visando a realização da democracia económica, social e cultural e o aprofundamento da democracia participativa”. Como assegurar a defesa daqueles que ainda se pautam por estes princípios?
Esta nova realidade impele a que se observe atentamente a história, que se vise aprender com ela, que se retire as devidas reflexões e percepções sobre os vários mecanismos mais ou menos sofisticados que, sublinho, somente queriam promover o nosso bem, o bem da população, que não se deveria desviar do reto ou ser alvo de influências que comprometessem o seu ‘espírito’. De facto, Portugal experienciou um longo hiato temporal em que muitos simplesmente não ‘existiam’, muitos eram afastados e silenciados, até ao completo esquecimento. Mas não esqueçamos. Não esqueçamos aquilo que ‘outros’ querem apagar das nossas memórias e não esqueçamos que a ameaça da censura paira sempre no ‘ar’ e somente aguarda a instrução dos ‘ventos’ para mudar a sua direção: censurar ou cessar a censura.