A analogia foi feita pelo Alto Representante da União Europeia para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, no ano em que começou a Guerra na Ucrânia. Desde então a União Europeia (UE) recebeu mais de 4 milhões de refugiados provenientes da Ucrânia. As outras nacionalidades ficaram ao abandono.
Em março de 2022, quando a Rússia invadiu a Ucrânia, a União Europeia mostrou-se eficaz no acolhimento de refugiados, no que pode ser considerado o maior êxodo populacional na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. Com o regresso da guerra à Europa, o conjunto dos 27 países ativou a Diretiva de Proteção Temporária. Um mecanismo utilizado apenas para situações de emergência, que visa conceder proteção imediata e coletiva às pessoas deslocadas e aliviar a pressão sobre os sistemas nacionais de asilo dos países da UE. Este regime possibilita a autorização de residência, assistência médica, o acesso à educação por parte das crianças e ao mercado de trabalho para os adultos. Em novembro de 2023, mais de 4,2 milhões de pessoas da Ucrânia beneficiaram deste mecanismo. A maioria encontra-se na Alemanha, sendo que Portugal acolheu 58 490 ucranianos, segundo os dados divulgados pela Comissão Europeia.
Refugiados a fugir da Ucrânia para países vizinhos
A guerra na Ucrânia demonstrou a realidade das políticas europeias em matéria de refugiados. No mesmo ano em que a solidariedade europeia ultrapassou todas as fronteiras para chegar à Ucrânia, uma outra realidade parece ter ficado esquecida.
Entre 2015 e 2016 a Europa atingiu o auge da crise migratória. Milhares de pessoas procuravam na Europa a segurança necessária para reerguer as suas vidas, muitas devastadas pelas guerras. Neste período, foram detectadas mais de 2,3 milhões de travessias irregulares. Em 2022, este número centrava-se nos 330 000, o maior número desde 2016. A travessia do mar Mediterrânico continua a ser a que mais mortes causa. Só em 2022, cerca de 1400 pessoas morreram ou desapareceram porque arriscaram atravessar o mar, em busca de um futuro. Esta rota é sobretudo utilizada por migrantes provenientes do Norte de África, sendo a Líbia o destino final para muitos.
A Líbia que é financiada pela UE, através de formações pagas pelos contribuintes europeus à guarda costeira líbia que com a ajuda da Frontex (Agência Europeia da Guarda de Fronteiras e Costeira) localizam os refugiados e obrigam-nos a regressar a território líbio, onde muitos acabam em redes de tráfico de escravos. Foi através do acordo entre a Frontex e as autoridades líbias, que o número de pessoas que tentam atravessar o Mediterrâneo central diminuiu. Se em 2017, este número era de 118 962, em 2018 baixou para pouco mais de 23 mil. Já em 2021, o número de passagens ficou-se pelos 65 682, segundo a Eurocid. Enquanto no auge da crise de refugiados o número de pedidos de asilo na UE era de 1 221 690, em 2022 havia menos de 1 milhão, 965 665, de acordo com os dados fornecidos pelo Parlamento Europeu.
É importante fazer a distinção entre os requintes de asilo e os refugiados. A página na internet da UE apresenta os requerentes de asilo como “ pessoas que fazem um pedido formal de asilo noutro país porque teme que a sua vida esteja em risco no seu país de origem. (…) os nacionais de países terceiros devem solicitar a proteção no primeiro país da UE em que entrem.” É isto que lhes permitirá ter o estatuto de refugiado ou proteção internacional. Já os refugiados “são pessoas com um medo fundado de perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade, política ou pertença a um grupo social particular que foram aceites e reconhecidos como tal no país anfitrião.” As pessoas que fogem de conflitos armados, como aconteceu com os refugiados da Ucrânia ou da Síria, tendem a ser caracterizados como refugiados humanitários. Em 2015 chegaram à Europa mais de 885 mil pessoas que fugiram da guerra na Síria. Chegaram através da rota do Mediterrâneo Oriental, maioritariamente refugiados vindos do Médio Oriente, passando pela Turquia para depois chegarem à Grécia, Chipre ou Bulgária.
Rota do Mediterrâneo Oriental
Muitos dos que conseguiram ultrapassar a primeira fronteira e chegavam finalmente à Europa, acabam por integrar campos de refugiados, supostamente temporários, mas que rapidamente se tornam definitivos para milhares. Um desses campos, localizado na ilha grega de Lesbos, é o campo de Moria.
Campo de refugiados de Moria, na Grécia.
Este campo foi inaugurado em 2015 e projetado como um abrigo provisório com o objetivo de receber refugiados em trânsito. A situação no campo de Moria era dramática, de acordo com a organização dos médicos sem fronteiras, “até crianças de 10 anos tentaram suicídio”. Num campo que foi construído para receber 2 mil pessoas e onde chegaram a estar mais de 8 mil, faz com que uma casa de banho seja utilizada por mais de 70 pessoas que se encontram abrigadas em contentores, tendas ou protegidas apenas por lonas impermeáveis. O excessivo número de habitantes disputa violência e criminalidade, levando a que zonas do campo, por vezes, estejam interditadas a organizações como os médicos sem fronteiras.
Moria acabou devastado por um incêndio em setembro de 2020, levando cerca de 13 mil pessoas a fugir. Volvidos quase 4 anos, ainda não foram apuradas as circunstâncias em que o incêndio deflagrou, nem o número de vítimas que causou.
Campo de Moria após o incêndio (2020).
Certo que no ano de 2021, foram apenas registadas 20 254 passagens na rota do Mediterrano Oriental, fruto do acordo estabelecido entre a União Europeia e a Turquia, em 2016, que reverteu a tendência sentida em 2015. O acordo selado entre a UE e a Turquia, pretendia reduzir o número de chegadas irregulares à Europa, e para isso a UE financiou a Turquia num total de 6 mil milhões de euros para melhorar as condições de vida dos refugiados sírios no país. Até porque a UE criou ainda a “política de contenção” que prevê que os refugiados não sejam levados para o continente, e por isso devolvidos ao país de onde partiram, nomeadamente à Turquia.
Estatísticas, acordos e políticas que evidenciam como a União Europeia gere diferentes crises de refugiados, tendo em conta as suas nacionalidades. Daí que as fronteiras que os refugiados têm de atravessar sejam sobretudo as fronteiras ideológicas do racismo e da xenofobia.
O livro do jornalista André Carvalho Ramos, “A Última Fronteira”, é exemplo perfeito de como a Europa, por um lado, concedeu proteção automática aos refugiados ucranianos, sendo que por outro lado os refugiados do Médio Oriente e de África continuam à espera, muitos nem saberem de quê. “Para esses refugiados, a travessia do Mediterrâneo é apenas o princípio da jornada mais dolorosa da sua longa marcha. Isto para os que sobrevivem, porque há aqueles que ficam pelo caminho – alguns estão enterrados em solo europeu, sem que as famílias se consigam despedir deles, outros jazem em parte incerta, com os seus corpos por encontrar.”
Este livro resulta, de acordo com o autor, de uma investigação jornalística de 8 anos. Nele podemos encontrar histórias de coragem de quem conseguiu reencontrar nos países europeus a vontade de viver, mas também histórias dramáticas daqueles que fizeram tudo, incluindo recorrer a redes de tráfico humano, para chegar a um porto seguro. As histórias que constam neste livro são um choque de realidade mesmo para quem diz estar atento à atualidade. Criam empatia e solidariedade nos que já a tinha para com os refugiados e alertam os outros para a situação humanitária trágica destas pessoas.
Neste sentido, é relevante destacar o episódio que marcou a fronteira entre a Polónia e a Bielorrússia em novembro de 2021, meses antes da ofensiva russa na Ucrânia. Milhares de pessoas, com a ajuda das autoridades bielorrussas conseguiram chegar à fronteira do país com a Europa, obrigando as autoridades polacas a intervir. Dezenas de migrantes acabaram detidos, Varsóvia acusou o Kremlin de “orquestrar” esta crise, e o Kremlin culpa a União Europeia. No meio de tudo isto as principais vítimas são sempre as pessoas que passaram dias e noites ao relento no meio da selva, expostas a temperaturas negativas. Muitos acabaram por sucumbir “(…) sozinhos, enterrados de frente para a floresta que os viu morrer.” O jardim de Josep Borrell cada vez mais se transforma numa selva.
“Como a guerra na Ucrânia demonstrou que afinal é possível acolher os refugiados que morrem às portas da Europa.”
Nota: Este artigo não faz qualquer juízo de valor sobre as nacionalidades dos refugiados acolhidos na Europa.